Definir Bacurau não é uma tarefa fácil. Isso porque o roteiro não demonstra a menor intenção de entregar um filme de gênero. Assim, o resultado é uma mistura explosiva que vai desde o faroeste até o drama tipicamente brasileiro, com tintas de ficção científica e forte influência de John Carpenter. Evidentemente, tal abrangência poderia culminar numa história bagunçada, desfocada e completamente incoerente, mas, felizmente, Bacurau é exatamente o oposto disso.
Escrito e dirigido por Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles a história, que se passa “daqui a alguns anos”, começa com uma sequência de fuga entre dois personagens à bordo de um caminhão-pipa rumo a Bacurau, uma pequena cidade nordestina cuja placa de boas-vindas já traz a mensagem “Se for, vá na paz”. Como qualquer município interiorano brasileiro, Bacurau é fartamente explorada por políticos, que só aparecem na época das eleições e os cidadãos são pessoas humildes que vivem em seus casebres na única rua da cidade. Então, o que essa comunidade teria de especial?
Assim como fez em seus (ótimos) trabalhos anteriores, Kléber Mendonça Filho constrói cuidadosamente sua narrativa através de alegorias dos mais variados tipos, sempre em prol de um discurso político afiado, mas nada gratuito. Se em Aquarius o mote era a luta pelos valores e a preservação da memória – com a “teimosia” da protagonista representando a perseverança daqueles que não colocam o dinheiro acima de tudo – Bacurau reflete a realidade de um país dividido. Literalmente, nesse caso, pois aqui o Nordeste é uma região separada do restante do país.
Essa premissa permite aos roteiristas defenderem uma visão do futuro que pode soar absurda à primeira vista, mas que jamais deixa de ilustrar o pensamento daqueles que se identificam com os atuais governantes brasileiros. Logo após a divulgação do resultado das eleições, era difícil encontrar alguém que não tivesse lido ou escutado um comentário sugerindo que o Nordeste deveria ser “excluído” do Brasil por “não saber votar”. Pois o futuro imaginado por Mendonça Filho e Dornelles é o de um país que prega a execução pública em São Paulo ao mesmo tempo em que tenta apagar o Nordeste, já esquecido, do mapa. Independente de julgamento, as alegorias do roteiro são claras e convertem a fictícia Bacurau num bastião de resistência, exalando brasilidade e resiliência.
Não é por acaso que vemos um casal assassinando a tiros dois cidadãos de Bacurau. De onde eles são? Do sudeste, logicamente. Também não é coincidência que esses mesmos assassinos se reportem aos vilões, estrangeiros, com submissão. “Somos iguais a vocês, viemos de uma terra rica como a de vocês”, diz a mulher vivida por Karine Telles (Benzinho). A resposta, debochada e carregada de acidez, é mais uma alfinetada do roteiro. Diferente do que acontece no restante do país, Bacurau tem orgulho de suas origens, celebra sua história e valoriza seus cidadãos, que não se veem na necessidade de se submeterem a bajulações.
E se os dois primeiros atos são caracterizados por um ritmo mais cadenciado que vai do drama ao suspense, mas sem perder a atmosfera de faroeste, o final se destaca pela imprevisibilidade, banhando a sangue uma jornada que busca sacudir o brasileiro em seu âmago. Enquanto atacam aqueles que enxergam como os verdadeiros vilões, Mendonça Filho e Dornelles fazem o espectador vibrar com o mais puro sentimento de… ser brasileiro. Pois ser brasileiro é não desistir, é ser alegre, caloroso, amigo, mas também valente, questionador, resiliente e sem medo de expurgar o mal de sua terra.
Terra essa que é filmada pelo diretor de fotografia Pedro Sotero com crueza, investindo numa paleta acinzentada que vai ganhando (algumas) cores conforme a história avança, com direito a tons fortes de verde e vermelho, representados pela mata e, claro, pelo sangue. Sotero também aproveita a paisagem local para criar planos belíssimos que valorizam o sertão nordestino. Já o design de produção de Rita Azevedo merece créditos não só pela construção de Bacurau como uma espécie de vila cortada por uma única rua, mas também por simbolismos sutis, como a igreja sempre vazia ou o Museu, que acaba ganhando destaque nas sequências finais. Por outro lado, a direção mostra-se burocrática e presa a cacoetes (como a abundância de zooms), o que não deixa de ser decepcionante.
Mesmo assim, Mendonça e Dornelles são hábeis em imprimir energia, acelerando o ritmo de forma gradual até se entregarem ao clímax, quando a dupla pega emprestado alguns elementos da filmografia de John Carpenter (o gore e a trilha sonora) e Quentin Tarantino (o banho de sangue repentino) para entregarem ao espectador uma conclusão que adota o choque como meio catártico.
E para não dizerem que não mencionei o elenco, cabe mais um elogio à produção, em virtude da acertada ideia de apostarem em atores locais para darem vida aos personagens, o que confere ainda mais impacto e honestidade à obra. Nesse sentido, enquanto Tomas Aquino e Barbara Colen se destacam como os protagonistas, Sônia Braga brilha, mais uma vez, ao construir a Dra. Domingas como uma mulher repleta de nuances.
E se iniciei este texto apontando a dificuldade de definir Bacurau, confesso que ao terminá-lo, me sinto confortável em dizer que a obra assinada por Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles é, além de uma carta de amor à brasilidade, a representação audiovisual do orgulho de ser brasileiro.
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