Há pouco mais de 30 anos, morria na cadeira elétrica um dos maiores serial killers da história dos Estados Unidos. Responsável por assassinar e estuprar mais de três dezenas de mulheres, Ted Bundy era o típico jovem acima de qualquer suspeita: boa pinta e cheio de lábia, o que lhe conferia imensa vantagem ao seduzir suas vítimas, Bundy também era um estudante de direito dos mais dedicados, sendo considerado brilhante e extremamente promissor. O problema é que o menino prodígio escondia uma face diabolicamente sádica e perversa, capaz até de decapitar seres humanos e fingir que nada aconteceu. Pior, alegar que nada fez. Esse é o tipo de “ser humano” retratado em Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal.

Escrito pelo estreante Michael Werwie a partir do livro de Elizabeth Kendall (ex-esposa de Bundy), o roteiro ignora as origens do psicopata, se concentrando não no que poderia tê-lo gerado ou motivado, mas sim em suas ações diretas, já como universitário prestes a conhecer sua futura esposa, a mãe solteira Lisa Kendall, com quem nutriria uma relação longeva e extremamente prejudicial à moça. 

Curiosamente, o texto de Werwie jamais mostra Bundy cometendo atrocidades, permitindo ao espectador tomar conhecimento dos crimes somente através de notícias veiculadas no jornal ou na televisão. Essa abordagem beneficia o monstro, já que ao negar ao público a verdade dos fatos, joga luz sobre Bundy que, com sua retórica convincente, sempre acaba saindo por cima. O problema é que se a lábia de Bundy funciona com Lisa, o mesmo não acontece com o espectador, ou ao menos com quem conhece a história do matador em série. Em outras palavras, a partir do momento em que sabemos a verdade, o suspense ou pelo menos a ambiguidade caem por terra.

Tendo isso em mente, nos resta admirar a entrega de Zak Efron como Ted Bundy: se por um lado a sua escalação faria sentido diante do charme do personagem – e nesse sentido Efron se sai tão bem quanto o esperado – a faceta doentia de Bundy demandaria um esforço até então inédito por parte da estrela de obras como High School Musical, Um Homem de Sorte, Vizinhos e O Rei do Show. E por mais que Efron também mostre coragem ao protagonizar cenas de nudez e sexo, é verdade também que a produção não explora tanto a personalidade do protagonista, deixando para o ator poucas oportunidades para retratar a mente daquele monstro, como na cena que sucede a sentença final e que mostra Bundy num monólogo em que Efron imprime densidade dramática praticamente sem alterar a expressão facial, ou seu derradeiro encontro com Lisa, já no corredor da morte.

Por outro lado, uma vez que o filme prefere a tolice de oferecer a Efron/Bundy a oportunidade de ganhar do espectador o benefício da dúvida, perde-se a chance de construir um retrato mais aprofundado de uma criatura visivelmente perturbada e que geraria um fascínio muito maior do que um simples jogo de gato e rato farsesco e que pode ser resumido no longo julgamento que preenche a segunda metade da projeção: Enquanto o diretor Joe Berlinger (que também comandou uma recente série documental sobre Ted Bundy) filma as sequências do tribunal como um grande espetáculo midiático, isso acaba refletindo a própria forma como Bundy enxerga seu processo jurídico, percebendo imediatamente seu potencial perante a imprensa ao mesmo tempo em que descobre o quanto aquilo tudo pode ser mais divertido do que fugas contraproducentes. 

Perante a superficialidade com que Berlinger e Werwie conduzem o arco de Ted Bundy, sobra para Lisa Kendall ficar com todo o peso dramático da narrativa. E Lily Collins não faz feio como o suposto (afinal, estamos falando de um monstro) grande amor da vida do protagonista. Provavelmente como efeito de ter sido adaptado das memórias da própria Lisa Kendall, Collins é quem tem o maior material para compor sua personagem, convertendo-a numa criatura eternamente em conflito, já que seu amor por Bundy é sempre um dilema diante da possibilidade deste ser exatamente aquilo que tanto nega. E essa sensação de incerteza, de dúvida, é encarada por Lisa como um fardo, um peso carregado durante toda a vida. Não à toa, vemos vários momentos nos quais ela se vê apreensiva diante da televisão acompanhando o julgamento do marido. Afinal, ele está mesmo dizendo a verdade? Ted Bundy é mais uma pessoa inocente condenada injustamente? Ou ele é a criatura perversa e maligna que todo o país parece acreditar que é?

Por isso, é comovente ver Lisa em seus instantes finais, mesmo após a condenação do marido (que por sua vez, para variar, contestou convincentemente a decisão do júri), visitá-lo depois de anos apenas para tentar extrair a verdade de uma vez por todas. “Liberte-me deste peso. Por favor me liberte!” ela grita enquanto tenta obter a confissão definitiva de Bundy. Momentos como esse, por si só, já fazem de Lis uma personagem fora da curva nesse tipo de biografia, visto que obras como essa costumam negligenciar as figuras femininas, relegando-as a papeis secundários, submissas aos homens.

Infelizmente, em meio a isso, o texto de Werwie ainda apresenta tropeços bobos como ao mostrar Bundy dentro de uma cela enquanto aguarda ser chamado pelo juiz bradando que está esperando “por 7 horas”, sendo que não há qualquer relógio por perto ou a desastrosa sequência que o mostra num encontro forçado com sua mãe, que se mostra fluente em clichezês ao soltar chavões como “uma mãe não deve viver mais que seu filho” ou o famigerado “estou aqui porque te amo”. Como se não bastasse, o roteiro evita responder questões cruciais: dividindo-se entre a vida com Lisa e seus estudos, como pode alguém sem um trabalho aparente, conseguir dinheiro para pagar suas fianças ou o combustível do seu carro? De onde vem o dinheiro? Onde estavam seus pais quando Bundy cometeu seu primeiro crime? Como ele chegou a Seattle e sob qual pretexto? É verdade que, durante uma conversa com um policial que o para no trânsito, ele diz que chegou apenas para visitar sua namorada, pois vive e faz faculdade em outra cidade, mas além da resposta ser inconclusiva, pode ser apenas mais uma de suas mentiras.

Descartando subtramas com a mesma facilidade que as inicia – como o prefeito que usa o caso para se promover, ou a ideia de que o assassino pode ter uma dupla personalidade – Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal é um esforço cinematográfico que conta com inquestionáveis valores de produção (como o figurino e a ambientação dos anos 1970), mas que frustra ao arranhar apenas a superfície de uma mente que de tão perturbada e doentia, certamente seria capaz de gerar uma história ainda mais arrebatadora do que um mero atestado da versatilidade de seu intérprete.

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Crítico de Cinema e Carioca. Apaixonado pela Sétima Arte, mas também aprecia uma boa música, faz maratona de séries, devora livros, e acompanha futebol. Meryl Streep e Arroz são paixões à parte...

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