Antes de sentar na poltrona do cinema esteja ciente: para você gostar de As Viúvas (Widows) você não pode subestimar o poder e determinação das mulheres. Aqui elas tomam controle da situação, normalmente assumida por homens em filmes.
O atrativo deste filme é a direção e roteiro de Steve McQueen (“Shame”) que há 5 anos estava longe das telas e que agora vem em parceria com a roteirista Gillian Flynn (“Garota exemplar”). Se você não lembra de McQueen é o mesmo diretor de “12 Anos de Escravidão” e o primeiro diretor negro a vencer um Oscar de Melhor filme e o terceiro na indicação a direção. Neste novo filme ele acerta novamente na direção de atores, o roteiro tem ótimos momentos e sua melhor aposta é a fantástica atriz Viola Davis (“Histórias Cruzadas”, “Limite entre nós”).
Há dois anos atrás Steve apresentou a Viola a ideia do filme. Ele conhecia a trama desde a adolescência ao assistir a minissérie britânica ITV (1983) e agora decidiu realizar sua versão. Quando jovem se identificou com a série televisiva onde estas mulheres eram vistas como menos, frágeis e julgadas por sua aparência da mesma forma que ele se via e era tratado por ser negro. Anos depois percebeu que está identificação nos anos 80 deveria ser expurgada hoje através das voes de outras mulheres.
Estas voes saem com força de um elenco poderoso de atrizes: Davis, Michele Rodriguez, Elizabeth Debicki e Cynthia Erivo. Diante de suas dores e dificuldades estas mulheres com nada em comum se unem.
Tudo se passa na violenta Chicago. Quatro mulheres perdem seus maridos que num assalto malsucedido sofrem uma emboscada da polícia. Verônica (Viola Davis) durante o luto toma conhecimento de uma planta arquitetônica e uma caderno de anotações deixado pelo marido Harry (Liam Neeson) com instruções para um novo roubo que estaria sendo planejado por ele e seus companheiros. Num violento encontro Verônica descobre uma dívida deixada por Harry e os outros assaltantes sendo obrigada a entregar uma grande quantia de dinheiro para o vereador Jamal Manning (Brian Tyree Henry).
As viúvas possuem uma dívida, o que impulsiona Verônica a ser a líder e ir atrás das outras para realizar o assalto, dar uma parte do dinheiro que quitaria o que foi imposto e cada uma ficaria com partes iguais para recomeçarem suas vidas.
Alice (Elizabeth Debicki) é uma viúva que sofria abuso e violência doméstica, de uma beleza estonteante, mas maltratada e manipulada por uma mãe que a convence a se vender como um pedaço de carne. O oposto temos Linda (Michele Rodrigue) destemida e que faz tudo pelo bem dos filhos. A quarta viúva Amanda (Carrie Coon) misteriosamente decidi se abster e cuidar do filho de poucos meses. Então apenas as três decidem se jogar no mundo do crime.
O dinheiro está sendo disputado também por uma gangue de assassinos de Chicago e o violento e frio agiota Jatemme (Daniel Kaluuya) que ronda e ameaça suas famílias.
Este clima de tensão que a qualquer momento elas serão mortas fica pulsando no filme e pelo menos em mim fica aquela torcida que nenhuma delas tenha fim trágico. Até porque o filme tem muitas cenas de violência, muito sangue e já havia ouvido que eram cenas fortes. As considero assim por ver como a violência ficou banalizada, como um tiro em segundos termina uma vida e como já é costumeiro matar negros “sem querer” ou porque ele reagiu.
Há uma cena que me impressiona por sua construção onde dois negros estão presos dentro de uma espécie de armário e são levados para um interrogatório feito por Jatemme (Daniel Kaluuya,). Aqui seu antagonismo é surpreendente, além do jogo perfeito da câmera e a direção precisa nesta cena. Jatemme parece doce, compreensivo e ao mesmo tempo os olhos que do ator já são grandes demonstram uma fúria e causam um amedrontamento. Por sinal Daniel já mostrou que é um ótimo ator em “Corra” e aqui me deixa mais surpresa por mostrar uma outra variação de trabalho.
O que me fascina é ver nas telas mulheres fortes (o que fora das telas não é visto e valorizado da mesma maneira) mesmo abaladas pela tristeza e dificuldades. Não é só explorado pelo diretor a beleza feminina, sua gentileza e a vulnerabilidade que sempre nós mulheres somos retratadas. Elas são determinadas, que conquistam o rumo de suas vidas após a perda, que necessitam lutar para estarem vivas e que são ousadas.
Seria natural ver homens planejando um assalto, sendo inteligentes, usando armas e violência. Aqui as mulheres tomam o lugar dos que sempre tiveram posse e aí que está a grande virtude do roteiro. Mulheres exigindo mudanças e dando voz à sua raiva.
Viúvas é um filme que não nos reduz e só reforça a nossa força (feminina) e acho extremamente importante reforçar a potência da mulher negra e o árduo caminho para ter espaço e respeito num mundo que é explícito que elas não têm privilégios. Importantíssimo ver uma protagonista negra nas telas e me deparei com uma surpresa: quantas vezes você já viu uma atriz negra interpretando uma mulher bem-sucedida e rica?
Pode parecer exagero, mas este papel provavelmente seria destinado a uma atriz branca e aí esta um dos erros que o cinema e arte ainda persiste. McQueen quebra isso e valoriza o grande potencial artístico e a beleza de Viola e reforça o quanto é importante que mais artistas negros sejam valorizados e estejam presentes nas telas. É hipnotizante o semblante de Viola Davis com a música de Nina Simone ao fundo, as lágrimas que saem pesadas dos olhos e o grito comedido já nos primeiros minutos do filme. Há um embate de olhares entre Viola e Cynthia Erivo (Belle) que é um duelo de grandeza e talento.
Davis é visceral, imprevisível e nos conectamos rapidamente com suas interpretações. Acredito que não deve ser seu trabalho mais relevante e com destaque como atriz, mas é incrível como tudo que ela interpreta soa tão verdadeiro que assusta.
Já Erivo interpreta uma mãe batalhadora que se divide num salão de cabeleireiro e como cuidadora de crianças. A atriz e cantora é uma surpresa, conhecida por musicais da Broadway e seus prêmios nesta área e aqui nas telas traz uma força, fisicalidade, um olhar e firmeza nas palavras que me ganha neste papel que é coadjuvante e que nem faz parte do núcleo das viúvas, mas que tem um destaque importantíssimo.
Elizabeth Debicki (“Guardiões da Galáxia Volume 2) tem uma Alice interessante de ser explorada pela atriz. Ela traz momentos engraçados e imprevisíveis no filme (um respiro num ar tão violento), tentando sair do estereótipo linda, loira e burra e cresce diante dos nossos olhos, mas seu desfecho considero o mais fraco da trama.
Não é um filme apenas sobre assaltos, perseguições em carros a toda velocidade e talvez do gênero ação. Fala sobre ganância, corrupção excessiva, racismo, com uma crítica social forte, as trocas de favores na politicagem, o uso abusivo de armas (é assustador como se pode comprar uma arma como se fosse numa farmácia), as relações de poder e o quanto pode ser duvidoso confiar em quem amamos. O diretor relata que desde que assistiu a série há 35 anos nada mudou, mas que se o filme que ele produziu alertar, chegar no espectador e ser útil já é algo grandioso.
O filme sofreu já algumas críticas por perder seu foco, pelos diversos temas explorados e que podem cansar os espectadores ao longo de 2h10 de duração. Confesso que num ano péssimo de produção Hollywoodiana este por enquanto é um dos melhores que assisti. Pelo menos teremos diante das telas um elenco “grandioso” que além dos já citados há participações de Robert Duvall e Collin Farrell como pai e filho (interpretando o perfeito exemplo de como se corromper facilmente na política).
Prestem atenção nas cenas que a câmera nos coloca dentro da van, ou fora do carro (a cena do vereador com a assessora é um primor), o início bombástico e muito bem editado com o momento amoroso da protagonista e cenas que a violência se aproxima mais ainda com o posicionamento da câmera.
Mas o roteiro tem falhas no desfecho de alguns personagens (aquela sensação que poderia ser melhor, pois o elenco merece mais do que isso) e só me surpreendeu num evento que Verônica sofre sobre sua relação com o marido e a ligação com o filho. Sim, a reviravolta final é bem previsível.
Este ano percebi uma leva de filmes sobre empoderamento, mulheres sendo protagonistas, onde elas brilham e aqui em As Viúvas a sonoridade entre elas é um lema a ser seguido e porque não dizer jogado ao mundo como forma de resistência.
Pode não ser o melhor filme da pequena trajetória cinematográfica de Steve McQueen, mas ele tem o dom de extrair interpretações verdadeiras. Desfrute!
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