Ditaduras causam marcas. Em tempos difíceis em que, no Brasil, o real e o ficcional se sobrepõem e criam uma realidade em que a ditadura foi benéfica para o país, Deslembro, DESLEMBRO primeiro longa de ficção de Flávia Castro e ganhador do prêmio FIPRESCI no Festival do Rio em 2018, traz o viés mais humano de quem, de diferentes formas, foi afetado por um regime militar.

Em 1964, o Brasil, em um período turbulento de Guerra Fria e ascensão do regime comunista, depôs o Presidente João Goulart para que os militares alcançassem o poder. Um regime que duraria 21 anos, terminando em 1985, assolou o país. Foi um período em que, além da repressão da mídia em não poder abordar nada que não passasse pelo aval dos militares, exílios, assassinatos, torturas e desaparecimentos aconteciam com frequência. Nesse contexto, o filme aborda como a família de Joana (Jeanne Boudier) lidou não só com essa ditadura, mas com a ditadura da Argentina, já que seu padrasto a vivenciou com a mesma intensidade que sua mãe biológica vivenciou a brasileira.

Com todas as incertezas da adolescência e a mudança brusca da França para o Brasil após a Lei da Anistia, que aconteceu em 1979, Flashes da memória de Joana começam a surgir, e ela já não sabe mais o que era real ou não em meio a várias lembranças confusas. Sua Avó paterna, interpretada por Eliane Giardini, que também ganhou o prêmio de melhor atriz coadjuvante do Festival, tenta não só construir um laço afetivo perdido entre ela e a neta, como tenta também ajuda-la a reconstruir suas memórias com fatos que ela mantém guardados, por suas investigações para tentar encontrar seu filho, e de todo o trabalho que ela realizou para ajudar famílias a encontrarem seus familiares desaparecidos. Não só a história emociona como a própria trilha sonora escolhida merece atenção: Caetano Veloso, naquela época, foi um dos exilados do país, por protestar em forma de arte.

É muito interessante ver Joana tentando se adaptar à cidade que fez seu pai desaparecer e obrigou a sua família a fugir, ao mesmo tempo em que descobre sua sexualidade e começa a traçar uma evolução para se tornar uma mulher. Contrastada com as mazelas desse período, com a fotografia impecável do longa e com o talento de Jeanne Boudier, que não só atua, como canta e fala em pelo menos três línguas, todos esses elementos em conjunto elevam o filme a outro patamar. Ele tem seus problemas em alguns momentos, como um francês não tão bom por parte da mãe da menina (Sara Antunes), ou algumas atuações mais medianas do elenco secundário, mas esses poucos detalhes não prejudicam a mensagem que ele quer passar, que se mostra tão atual na realidade do Brasil.

Deslembro, portanto, é um filme que, em tempos confusos, se mostra como uma reafirmação de que a ditadura deixa uma marca, e muda a constituição de famílias que, muitas vezes, nunca mais poderão se recompor da mesma forma. Em contrapartida, também mostra o estreitamento dos laços afetivos pela perda e luto, e a esperança de que esse período nunca mais retorne para assombrar novas famílias e novas crianças, pela perda de seus pais.

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Não sou a Zaqui nem a Quebra barraco, só uma youtuber nas horas vagas que escreve num blog maneirinho também 😆

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