“Ouvi uma piada uma vez: Um homem vai ao médico, diz que está deprimido. Que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador (…)

O médico diz: ‘O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade, assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo.

O homem se desfaz em lágrimas e diz: ‘Mas, doutor… Eu sou o Pagliacci.’”

Para quem leu Watchmen, a obra máxima de Alan Moore, ou assistiu à sua adaptação cinematográfica, é difícil não lembrar desse seu desolador conto narrado por Rorschach ao assistir a Coringa, filme ambientado nos anos 1980 e que conta a origem de um dos mais emblemáticos vilões da cultura popular contemporânea.

No longa-metragem, dirigido por Todd Phillips e produzido por Martin Scorsese (endossando as inspirações em Taxi Driver e O Rei da Comédia), o protagonista é Arthur Fleck, um homem que já não demonstra a menor disposição em esconder sua latente inadequação social. “É impressão minha ou o mundo está cada vez mais louco?”, ele diz à sua assistente social, com quem faz consultas periódicas em prol do tratamento de seus problemas neurológicos que incluem o riso incontrolável – independente do estado emocional – o que o coloca no centro de situações constrangedoras e que vez por outra se transformam em atos de hostilidade por parte das outras pessoas. “A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você aja como se não tivesse uma”, reflete Arthur no diário em que escreve seus sentimentos mais íntimos e também algumas piadas para uma sonhada e vindoura carreira como comediante.

Morando com sua mãe doente e trabalhando como palhaço para sustentar um estilo de vida triste e cada vez mais isolado do mundo, Arthur vê as coisas piorarem com a eclosão de uma greve generalizada dos coletores de lixo, o que aos poucos vai minando a população, revoltada com a postura dos políticos e empresários da cidade (liderados por Thomas Wayne), cujas principais medidas “contra” o colapso acabam impactando, claro, nos mais pobres e consequentemente em Arthur, que perde seus remédios e sua assistência social.

Mergulhando a narrativa numa melancolia desoladora evidenciada pelos tons pasteis da fotografia de Lawrence Sher e corroborada pelo design de produção frio de Mark Friedberg, o universo de Coringa é predominantemente cinza e jamais ensolarado. As ruas sujas e abarrotadas de pessoas refletem uma sociedade abandonada e impessoal, servindo de subterfúgio metafórico para o desacerto emocional de Arthur.

A metáfora, vale ressaltar é um dos instrumentos favoritos da produção para enriquecer a jornada do protagonista. Repare, por exemplo, na cena em que um grupo de adolescentes desordeiros acaba por agredir Arthur com uma placa contendo algo como “o show deve continuar”. Ou na imensa escadaria que se coloca no caminho diário de Arthur, ilustrando a dificuldade excruciante de seu cotidiano (onde ocorrerá um momento crucial na trama e que comentarei mais adiante). Mas se as metáforas contribuem para o enriquecimento narrativo, o mesmo não pode ser dito dos diálogos expositivos que permeiam toda a projeção. Além disso a montagem de Jeff Groth, que incorpora sequências inteiras que são apenas frutos da imaginação de Arthur, soa confusa e desnecessariamente complexa.

O que nos leva à performance de Joaquin Phoenix, cuja complexidade é diametralmente oposta: Exibindo o corpo de alguém que emagreceu mais de 20 quilos para assumir o papel, Phoenix investe na composição de um homem fragilizado, facilitando a assimilação da imagem de um sujeito pequeno e vulnerável perante o mundo. O ator também adota gargalhadas diferentes para cada situação específica – agudas ao assistir a uma comédia e mais estridentes em suas crises – e note como ele sente um incômodo na garganta durante esses episódios incontroláveis, como alguém duplamente punido por sua patologia, que condena uma reação genuinamente feliz a um impulso doloroso e desgastante.

Phoenix também é hábil ao retratar a exaustão de Arthur, seja ela física e/ou psicológica, e que mais tarde desencadeará um efeito dominó que o levará do desespero à loucura. Nesse sentido, o ator já mereceria aplausos só pelos poderosos olhares que lança durante suas cenas e que são capazes de revelar muito, com pouco. Repare, numa das primeiras cenas onde Arthur se vê num programa de TV, como Phoenix é capaz de imprimir inocência e pureza. Claro, sua postura física, o tom de voz e as inflexões quase infantis ajudam a construir essa imagem, porém, preste atenção na força de seu olhar na sequência em que Arthur confronta um personagem em seu apartamento (no terceiro ato), e será possível testemunhar um verdadeiro monstro digno de provocar o mais puro e genuíno terror.

E é nesse momento que retomo a discussão em torno do uso de metáforas: se no primeiro ato uma imensa escadaria servia como ilustração da jornada difícil e exaustiva de Arthur, no ato derradeiro, esta mesma escadaria gera catarse, ao mostrar o personagem, já transformado na figura que dá nome ao filme, praticamente em transe, dançando e tocando instrumentos imaginários enquanto percorre seus degraus. Nascia o Coringa, autoproclamado agente do caos e prestes a se tornar também um maestro da desordem.

Infelizmente, porém, o que se segue é uma verdadeira ópera de violência e ode à anarquia que, mesmo que condizente com o personagem, jamais é conduzida com segurança por seu diretor, Todd Phillips. Acostumado a comédias escrachadas como Se Beber, Não Case e Borat, Phillips parece, no mínimo, confuso diante da densidade do material que possui em mãos. Autor do roteiro ao lado de Scott Silver, ele brada “morte aos ricos”, discursa efusivamente contra a elite, mas é o niilismo do Coringa (ex-Arthur Fleck) que fala mais alto. Enquanto o diretor se dispersa em sua fúria, o Coringa, que inicialmente poderia surgir como uma voz em prol das minorias e representante dos oprimidos (antes de sua condição econômica, lembremos de sua condição neurológica), pode perigosamente se colocar a serviço de uma juventude transviada, que acredita na destruição do sistema como única solução dos problemas. É a violência inerente ao personagem numa história de ideologia turva, sem posicionamento firme.

Beneficiando-se de uma trilha sonora adequadamente sombria e que dita a transformação de drama em horror, o final de Coringa certamente intensificará o debate que já tinha começado bem antes da estreia da produção, jogando uma inebriante e densa cortina de fumaça sobre o que de fato está por trás dos problemas que afligem a sociedade contemporânea. O que não deixa de ser compreensível, já que é muito mais fácil e conveniente culpar uma filme ou um videogame pela eventual atrocidade de uma criatura já pré-disposta a cometê-la, do que investigar o  real problema. Será a ficção, a verdadeira responsável pelas mortes de inocentes? Ou será a vida real, com suas redes mais anti-sociais do que sociais, tantos noticiários sanguinolentos e programas sensacionalistas e tantos governos tão cegos aos problemas e às necessidades de suas nações? Afinal, devemos culpar um filme pelo espectador que não o entendeu?

Pois Coringa, não só é um belíssimo estudo de personagem, um verdadeiro retrato de um homem sendo consumido, aos poucos, pela loucura; como também é, direta ou indiretamente, uma análise da época em que vivemos. 

Author

Crítico de Cinema e Carioca. Apaixonado pela Sétima Arte, mas também aprecia uma boa música, faz maratona de séries, devora livros, e acompanha futebol. Meryl Streep e Arroz são paixões à parte...

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