Hoje, vivemos um cenário político tão intenso e tresloucado, que às vezes precisamos que o Cinema nos lembre que a política sempre foi palco de conspirações, artimanhas, golpes e o diabo a quatro, mas ao menos eram tempos mais civilizados. Peterloo, por exemplo, mostra exatamente essa faceta desumana que os governantes não fazem a menor questão de esconder, porém segue um caminho que o aproxima de nossa atual realidade. Afinal, uma cúpula de governo que só pensa em si e despreza a classe trabalhadora é um elemento atemporal na história da humanidade.

Escrito e dirigido pelo veterano Mike Leigh, o roteiro tem início logo após a derrota de Napoleão na Batalha de Waterloo em 1819, seguindo quatro sobreviventes ingleses de volta para casa. Desses quatro, apenas Joseph (David Moorst) acaba conseguindo, retornando a Manchester, sua cidade natal, direto para os braços de sua família. O que o jovem acaba encontrando, porém, é um lar extremamente combalido, sofrendo as consequências da terrível situação econômica na qual se encontra a Inglaterra, que é dominada por governantes gananciosos e que só pensam em esbanjar o dinheiro que arrecadam do trabalho dos pobres cidadãos ingleses. Esse cenário desencadeia uma onda de insatisfação por parte da população, culminando num protesto (pacífico) de grandes proporções cujo resultado trágico ficaria conhecido como “O Massacre de Peterloo”.

Abrindo a projeção com uma tomada impactante justamente por utilizar o olhar aterrorizado de um jovem soldado para expressar o horror da guerra, Leigh rapidamente mostra suas credenciais ao público. Sem o mesmo orçamento de obras mais contundentes como O Resgate do Soldado Ryan, Até o Último Homem e Dunkirk, o realizador britânico é hábil ao extrair emoção sem precisar investir em explosões ininterruptas e membros amputados. Seu brilhantismo está em provocar muito, com pouco. Nesse caso, o plano aberto com o jovem soldado ao centro, isolado,   paralisado diante de explosivos e sons de tiros, soa ainda mais eloquente do que uma sequência de ação.

Em contrapartida, Leigh soa mais didático ao incorporar elementos históricos ao script, como a Lei dos Cereais, por exemplo. Nesses momentos, Peterloo parece concebido sob medida para ser exibido em escolas e faculdades, tornando-se uma obra talhada para o estudo dos profissionais que queiram se aprofundar na área. Se a introdução dessas questões acaba escorregando na artificialidade, o mesmo não pode ser dito da atmosfera narrativa. Pois, Peterloo, é extremamente eficiente ao transmitir a desesperança da população inglesa, seja através da paleta fria de cores que cobre os casebres do interior inglês, ou mesmo por meio de diálogos, ao mostrar a preocupação dos personagens com a crescente onda de desemprego ou o abusivo aumento dos impostos.

Igualmente eficaz ao evocar urgência, Peterloo também beneficia-se de um design de produção que não poupa esforços para mergulhar o espectador no século 19, merecendo elogios pelo baixo uso de computação gráfica na concepção das paisagens. Menos proeminente, ainda que competente na mesma medida, a trilha incidental em sua melodia sempre suave, forma uma bela combinação com o tom melancólico da narrativa, evitando os rompantes hiperbólicos tão comuns em filmes do gênero.

Infelizmente, porém, o ritmo excessivamente lento da narrativa, dilui (ao menos em parte) a atmosfera alarmista tão brilhantemente construída. A sucessão de cenas com personagens discursando em prol da Reforma, além de soar episódica, revela-se prolixa e até mesmo enfadonha em muitos momentos. Não por acaso, quando o lendário orador Henry Hunt entra em cena, o espectador, já farto de tanto falatório, não é impactado da forma almejada pelo roteiro.

E já que mencionei Hunt, é admirável a intenção de Mike Leigh em humanizá-lo, conferindo-lhe uma personalidade forte e algumas manias, porém, é curioso notar como o personagem vivido pelo mediano Rory Kinnear (de 007 Contra Spectre) exibe traços tão questionáveis quanto seus opositores, como vaidade, pedantismo e arrogância. Porém, o cineasta não demonstra o mesmo cuidado ao retratá-los, transformando-os em caricaturas que representam o que o ser humano tem de pior. 

Vestindo preto o tempo todo, os juízes e reverendos que ocupam os cargos mais altos do poder, são a personificação do mal: extremamente arrogantes e orgulhosos, esses “poderosos” são hedonistas natos, passando os dias falando mal dos plebeus enquanto bebem litros e mais litros de vinho em suntuosos banquetes, ao passo que o Príncipe Regente é retratado como um bastião da frivolidade. Essa abordagem maniqueísta enfraquece a credibilidade de Peterloo, ao apelar para o radicalismo caricatural.

Ainda assim, em meio a tudo isso, o discurso de Mike Leigh é claro, ao construir um retrato extremamente ácido das diferenças de classes, onde ricos se certificam de acumular ainda mais riqueza e os humildes têm de trabalhar cada vez mais duro para sobreviver. Dentro desse contexto, o direito ao voto, tão fervorosamente defendido pelos cidadãos, revela-se uma causa pequena diante de um cenário tão desfavorável. A indignação é palpável, visto que enquanto não for possível eleger um representante legítimo, como reverter a situação? Essa luta, infelizmente, não foi exclusividade da Inglaterra e é justamente nessa universalidade que se encontra a força de Peterloo.

Pode parecer pouco se olharmos sob o prisma cristalino e devidamente lapidado de nossa realidade, mas se (ainda) temos os nossos direitos hoje, é porque muita gente teve de batalhar para garantí-los. E é nesse momento que volto ao parágrafo de abertura deste texto. Pois, às vezes, é preciso que o Cinema nos lembre do nosso passado. De nossas conquistas. Do que acontece quando nos omitimos.

Peterloo ganha relevância exatamente em sua proposta de mostrar a força do povo perante os desmandos de um governo, as consequências de uma liderança opressora. Infelizmente, há quem precise de filmes como esse para lembrar que nem tudo são flores e que é preciso lutar para garantir nossos direitos. Ou, trazendo para a atualidade, é preciso lutar para manter os nossos direitos.

Fosse alguns minutos menos longo, e menos maniqueísta, Mike Leigh, que já dirigiu o excepcional Segredos e Mentiras e os ótimos O Segredo de Vera Drake e Sr. Turner, tinha tudo para adicionar mais uma grande obra à sua filmografia.

Author

Crítico de Cinema e Carioca. Apaixonado pela Sétima Arte, mas também aprecia uma boa música, faz maratona de séries, devora livros, e acompanha futebol. Meryl Streep e Arroz são paixões à parte...

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