O empoderamento feminino está na moda. E não escrevo de forma pejorativa, muito pelo contrário, Tomb Raider: A Origempois a necessidade e a importância decorrente desta falam muito mais alto do que uma simples onda passageira, ou oportunidade comercial. Mesmo que vários projetos surfem nessa onda muito mais pelo dinheiro do que por causa nobre, o fato é que filmes como Jogos Vorazes, Star Wars e, especialmente, Mulher-Maravilha são obras altamente influentes e relevantes, não apenas socialmente, como também culturalmente. Graças à recente Diana Prince e seu alter-ego superpoderoso, a Mulher ganhou um símbolo e os/as mais jovens uma heroína inspiradora.

Já a franquia de jogos eletrônicos Tomb Raider colocava-se num lado oposto, surgindo como um legítimo estandarte da objetificação da Mulher na década de 90, culminando em duas adaptações estreladas por Angelina Jolie que soavam como um verdadeiro manifesto machista, através dos diminutos trajes de sua heroína, que mais tarde evoluíram para um nada discreto colant prateado, feito sob medida para valorizar o corpo de sua atriz, entre outros elementos questionáveis.

O fato é que hoje em dia, aquele Tomb Raider jamais funcionaria como aquele produto voltado para o consumo masculino e que objetificava a Mulher, já que, felizmente, o público evoluiu e iniciativas como o Time’s Up e o #MeToo atuam ativamente contra esse tipo de abordagem, o que fez com que a marca seguisse outro rumo, deixando de lado as versões de Jolie e abraçando o recente reboot dos videogames, onde Lara Croft passou a ser mais que um rostinho bonito (e letal), transformando-se numa personagem forte, realista e que trocava a sensualidade pela inteligência, o que não só elevou seus games, como aprofundou sua história que, aqui, ganha vida através da talentosa Alicia Vikander, vencedora do Oscar em 2016 por A Garota Dinamarquesa.

Transportada fielmente dos jogos para as telas, Croft já começa com seu novo visual, que agora é muito mais plausível e vai desde um funcional traje composto por calça militar e regata até o cabelo amarrado, abandonando o glamour artificial dos dois primeiros filmes. Fica claro logo no início que a intenção da produção é adotar um tom mais realista e sem arroubos estilísticos, o que fica evidente na sóbria direção de Roar Uthaug, que acompanha a ação com a frieza necessária para que jamais nos desprendamos dela, investindo muitas vezes na câmera nervosa para extrair tensão e abusando da sujeira para conferir mais verossimilhança às sequências de ação.

Uthaug, cineasta norueguês conhecido por A Onda (recentemente exibido pela Rede Globo), imprime dinamismo e traz um certo frescor, auxiliado por uma montagem conduzida cuidadosamente para aliar rapidez e clareza, impedindo que as inúmeras perseguições tornem-se um amontoado de imagens incompreensíveis, com destaque para a divertida sequência das bicicletas do primeiro ato, que, embora não se arrisque tanto, tampouco compromete sua eficácia.

Por falar em risco, é fácil notar (ou prever) o dedo dos executivos do Estúdio no projeto, facilitado pela contratação de Uthaug (novato em Hollywood) e por uma dupla de roteiristas igualmente desconhecida do cenário mainstream. Os diálogos, por exemplo, são o ponto fraco do roteiro de Geneva Robertson-Dworet (estreante) e Alastair Siddons (do independente Não Ultrapasse), já que abusam da exposição para fornecer informações primárias como “você está com os pagamentos atrasados há 3 meses” ou “a polícia de Tóquio parou as buscas há cinco anos”. E como se não bastasse essa forma pouco espontânea de estabelecer a situação financeira de Lara ou o andamento da investigação do sumiço de seu pai, ainda temos nossa inteligência menosprezada em função de uma insegurança alarmante: Para o roteiro, o espectador seria incapaz de perceber o brilhantismo de sua protagonista. Ou pior, Alicia Vikander não conseguiria mostrar que Lara está numa posição aquém de seus talentos, o que certamente embasou a idéia de introduzir um personagem que devesse dizer à moça: “você é inteligente demais para uma entregadora”.

Felizmente, essa insegurança não se reflete em seu elenco, começando pela protagonista: para começar, como Lara Croft, Vikander é inquestionavelmente mais expressiva que Angelina Jolie, assumindo também uma carga dramática que faz a sua versão ser, ao menos dramaticamente, mais complexa. Além disso, a atriz sueca traz uma bem-vinda humanidade à Croft, substituindo a onipotência aparentemente indestrutível da versão de Jolie por uma imagem sensível e até mesmo vulnerável em alguns momentos. Essa vulnerabilidade, por outro lado, consiste numa via de mão dupla: se no aspecto positivo ajuda a criar empatia através de uma caracterização mais humana e realista (note as expressões de dor de Vikander diante de golpes sofridos), permitindo que a personagem seja, de fato, atingida, há um certo grau de exagero na preocupação de desconstruir essa imagem infalível da moça, refletindo-se na atuação da própria Vikander, que insiste nos grunhidos e nos gritos agudos, com direito a um especialmente estridente e que beira o constrangimento (lembrei de minha prima ao ver uma barata). Isso forma um paradoxo de natureza irregular e comprova o conflito consequente desse equívoco, visto que a presença de uma protagonista forte (ilustrada pelos músculos de Vikander e suas habilidades) é substituída por uma figura excessivamente frágil (também simbolizada pela silhueta diminuta da atriz) e que não inspira confiança no espectador em seus embates com os vilões, principalmente aquele vivido por Walton Goggins (Os Oito Odiados). Já quando está com seu arco-e-flecha, a coisa muda de figura, devo admitir…

Goggins, aliás, merece todos os créditos pela construção de um antagonista à altura de sua oponente. Ao invés de apelar para os clássicos histrionismos desse tipo de papel, o ator opta por uma composição mais contida, utilizando um tom de voz baixo e controlado e que soa intimidador justamente por sugerir uma personalidade calma, imprevisível e, sobretudo, que pensa seus atos. Além disso, as motivações de seu Vogel vão além do simples impulso de matar Croft ou seus aliados, partindo de um plausível desejo por cumprir seu dever como o empregado de uma obscura corporação. E é admirável perceber que Vogel resiste às convenções do gênero até o final, reservando-se a uma ótima frase que exemplifica perfeitamente seu caráter: diante do derradeiro encontro com Lara Croft, o vilão, não vislumbrando possibilidade de fuga solta um “você quer mesmo fazer isso [lutar], garota? Não podemos voltar para casa antes?”. Resumindo, Vogel é um simples funcionário determinado a cumprir seu dever, não permitindo que o lado pessoal ou eventuais impulsos destrutivos lhe influenciem.

Claro que o roteiro novamente tenta arruinar os pontos positivos conquistados, incluindo alguns momentos absolutamente inacreditáveis e que representam furos hilários como aquele onde um capanga surge implacavelmente com uma IMENSA escada de metal para auxiliar numa travessia EM PLENA CAVERNA SUBTERRÂNEA. E o que dizer da câmara que tem suas luzes ligadas (isso mesmo que você leu) durante uma inspeção? Sim, porque é perfeitamente possível que haja iluminação artificial em locações escondidas há séculos…

Para piorar, a estrutura narrativa emprega a desgastada Jornada do Herói idealizada por Joseph Campbell e que inspirou histórias clássicas como Star Wars e Harry Potter, traçando um caminho batido para Lara Croft, repetindo informações o tempo todo e nos submetendo a uma série de acontecimentos previsíveis e já vistos em décadas de Cinema. Sem o menor compromisso com a originalidade, Tomb Raider ainda insiste em conflitos bobos e que só enfraquecem a narrativa, apelando até mesmo para frases dignas de um livro de autoajuda para inspirar seus personagens, como o famoso “nunca desista”.

Por fim, o compositor Tom Holkenborg (também conhecido como Junkie XL), depois do tropeço com Batman vs Superman, retoma o caminho do sucesso iniciado em Deadpool, compondo temas que, embora nada memoráveis, ao menos ajudam na construção da atmosfera, seja ela de tensão ou mesmo de exalar pura adrenalina. Em paralelo, os efeitos visuais surgem somente apropriados, oscilando entre o “acima da média” (sequência do naufrágio) e o “apenas mediano” (chroma-key da sequência do paraquedas).

Adaptando a nova versão de Lara Croft (que ganhou um reboot nos videogames), Tomb Raider – A Origem, troca a ação absurda de seus dois antecessores por uma experiência mais visceral e realista, entregando um longa-metragem que, se prejudicado pelo fraco roteiro – que certamente foi alterado pelos produtores afim de torná-lo mais didático para os espectadores – ao menos compensa pelo talento de seus atores e pela inspirada atmosfera de sua narrativa, soando como uma tresloucada aventura à la Indiana Jones (guardadas as devidas proporções, obviamente), mas com o espírito de mais uma heroína forte para os nossos tempos. E como estamos bem servidos de heroínas…

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Crítico de Cinema e Carioca. Apaixonado pela Sétima Arte, mas também aprecia uma boa música, faz maratona de séries, devora livros, e acompanha futebol. Meryl Streep e Arroz são paixões à parte...

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