Antes de analisar Jogador Nº1, devo fazer uma confissão: seu diretor, Steven Spielberg é um dos principais responsáveis pela minha formação como cinéfilo. Jogador Nº1Spielberg não só alimentou minha paixão pela Sétima Arte produzindo obras com as quais cresci, como me ajudou a enxergar o outro lado do Cinema. Mostrou que é possível fazer uma grande aventura calcada apenas no puro oferecimento de entretenimento, sem, com isso, ofender a inteligência do espectador ou abusar desta. Um dos mais talentosos cineastas de todos os tempos, Spielberg sempre foi capaz de entregar não só dramas densos e complexos, como A Lista de Schindler e Munique, como também entregou pérolas que aos poucos foram se consolidando como pilares da cultura popular. Aliás, não podemos esquecer que foi ele quem criou o conceito de ‘blockbuster’, ao estabelecer Tubarão, em 1975, como o primeiro da História.

E quando digo ‘cultura popular’, me refiro não apenas a filmes dirigidos por Spielberg, como E.T. – O Extraterrestre e Jurassic Park, mas também a produções concebidas em parceria com nomes como o de Robert Zemeckis (De Volta Para o Futuro) e George Lucas (Os Caçadores da Arca Perdida). A década de 80, diga-se de passagem, corresponde ao auge de Spielberg como artista, sendo responsável pela produção de Gremlins, Uma Cilada Para Roger Rabbit, Poltergeist e Os Goonies. Isso para não mencionar suas produções mais recentes, já que ele se mantém como um dos mais prolíficos de sua geração.

Isso tudo, caro leitor, é para dizer que Steven Spielberg, depois de algumas décadas afastado, está de volta ao gênero que ajudou a consolidar. E vou além: seu retorno é triunfal, pois este Jogador Nº1 é uma de suas obras mais divertidas, comprovando que seu talento permaneceu intocável.

Adaptado do livro homônimo de Ernest Cline, o roteiro assinado pelo próprio Cline ao lado de Zak Penn (Os Vingadores) se passa em 2045, num momento em que a Sociedade sofre com a superpopulação e a escassez de combustível além do descaso dos governantes, já que ‘as pessoas se acostumaram a sobreviver aos problemas, ao invés de solucioná-los’, como diz o protagonista Wade Watts, em certo momento. Watts, aliás, é um adolescente comum que vive numa comunidade pobre em Ohio (Estados Unidos), escapando frequentemente de seu cotidiano desinteressante através do OASIS, uma espécie de jogo em realidade virtual onde seu usuário pode ser quem quiser e viver num mundo muito mais atraente.

Dando a chance de trabalhar, estudar, interagir e conhecer outros lugares, o OASIS é uma verdadeira febre mundial. Mas com a morte de seu criador, o peculiar James Halliday, é descoberto um desafio feito por este, consistindo numa verdadeira caça ao tesouro onde o prêmio final é o próprio OASIS, cuja propriedade será herdada pelo primeiro que passar por três fases distintas. Com a possibilidade de controlar um produto que é consumido pelo mundo inteiro, não só jogadores comuns, como até mesmo grandes corporações passam a se mobilizar para decifrar os enigmas propostos por Halliday, o que acaba transformando o OASIS no palco de uma caçada de grandes proporções.

À primeira vista, Jogador Nº1 parece mais um daqueles filmes distópicos onde um adolescente acaba sendo a chave para a salvação da humanidade. Mas logo nos primeiros minutos, somos apresentados a uma trama que não demonstra o menor interesse em seguir essas fórmulas, guiando-se apenas pela visão apurada de seu diretor (comentarei sobre isso mais adiante). Aqui, Wade é apenas parte do processo, caindo de paraquedas numa luta muito mais séria do que parece.

O que Spielberg faz em Jogador Nº1 vai muito além de um roteiro bem estruturado ou personagens bem desenvolvidos: ao imprimir um forte sentimento de nostalgia em sua trama, o cineasta convida o espectador a uma viagem emocional onde o destino é nossa própria infância. Para os adultos, é aquele lugar no coração onde estão adormecidas as sensações que eram despertadas décadas atrás, através de um simples jogo eletrônico ou um filme alugado diretamente na locadora (e em VHS!). Já para os mais jovens, o sentimento é diferente, mas não menos puro: estão lá referências a jogos mais recentes e a animações mais familiares.

Por falar em referências, há para todos os gostos e idades e essa é a maior virtude do filme: não excluir ninguém, convidando todos os espectadores, de todos os perfis, a um verdadeiro espetáculo proveniente daquele que deve ser o recorde mundial de referências por minuto (a prova está nos intermináveis créditos de licenciamento ao final). E tirando uma ou outra mais imperativa (a moto de Akira), todas surgem de forma orgânica e ilustrando a personalidade de James Halliday, um eterno sonhador e apaixonado pela cultura pop, o que acaba perdoando algumas explicações desnecessárias (ora, o barato dos easter eggs é identificá-los sozinho). Os Easter Eggs (referências implícitas), vale ressaltar, são abordados de uma forma que flerta com a metalinguagem, já que nós não somos os únicos a identificá-los, pois os personagens também possuem essa função, gerando um efeito bacana de empatia imediata.

Claro que um filme não pode depender exclusivamente de referências para funcionar e, neste sentido, Jogador Nº1 está muito bem servido de roteiristas, visto que os supracitados Ernest Cline e Zak Penn concebem uma estrutura narrativa que não chama a atenção para si, deixando todos os holofotes para seus personagens. O que não impede algumas críticas construtivas ao ‘vício’ em tecnologia (pessoas que não largam o OASIS) e a importância do convívio social (real, não virtual); um leve comentário sobre o preconceito; divertidas alfinetadas envolvendo machismo e juventude (o menino de 11 anos que rouba a cena) e, claro, uma sonora contestação da política das grandes corporações, resgatando a velha tendência de apontar os engravatados como grandes vilões contemporâneos.

E Ben Mendelsohn, já habituado a vilões institucionalizados (vide Rogue One), encarna sem reservas o inescrupuloso Nolan Sorrento. Firme, seguro de si e determinado a cumprir com seu dever, Sorrento é pouco mais que um vilão Spielberguiano, ganhando profundidade não só graças à boa performance de Mendelsohn, mas também a falas significativas como ao justificar um assassinato dizendo ‘aquilo não foi pessoal, foi apenas uma decisão corporativa’, ou quando desdenha de seus superiores ao disparar ‘eu não tenho que alegrá-los, só tenho de deixá-los mais ricos’, em palavras que saem de sua boca como verdadeiros projéteis.

Um vilão rico como Sorrento demonstra a exatidão da famosa frase ‘por trás de um grande herói, há sempre um grande vilão’, e mesmo que o Wade Watts (ou Parzival, seu avatar no OASIS) de Tye Sheridan não exale a mesma imponência de seu antagonista, a verdade é que o jovem ator que surgiu no excelente Mud – Amor Bandido e despontou com X-Men: Apocalipse faz dessa impotência sua grande fonte de humanidade: Watts não é um super-herói musculoso e nem deveria ser. É apenas um adolescente medíocre de uma favela moderna buscando algumas horas distantes de sua realidade cruel (problemas familiares) e infrutífera. O fato de ter dado de cara com uma guerra virtual iminente é um acaso tão aterrador quanto a descoberta dos bastidores da tal ‘Caçada de Halliday’ e que é brilhantemente assimilada pelo jovem ator, com o carisma e a segurança de um legítimo protagonista Spielberguiano. E a frequente repetição desse neologismo só ressalta o legado construído por Steven Spielberg em mais de quatro décadas de uma carreira dedicada ao Cinema.

Para ilustrar o preciosismo técnico de Jogador Nº1 não irei muito além: com menos de 10 minutos de projeção, somos presenteados com uma sequência que engloba uma corrida de grandes proporções. O ritmo dessa sequência alcança um frenesi tão intenso que ao seu final é preciso certo tempo para recuperar o fôlego. Escolhi esse momento, pois é possível perceber o excepcional trabalho de montagem de Sarah Broshar (The Post) e do veterano Michael Kahn, parceiro de longa data de Spielberg e vencedor de 3 Oscars, que consiste em acelerar a ação de forma que seja impossível não embarcar na tensão envolvida. Nada de cortes rápidos ou câmera tremida, a dupla atinge seu objetivo através da simples cadência e do belo trabalho de câmera, que coloca o espectador dentro da ação.

Além disso, também é possível notar outra ótima fotografia de Janusz Kaminski (mais um premiado parceiro do cineasta), que distingue bem o mundo virtual do real, passando pelo preciosismo dos personagens digitais que, aliás, denotam a assustadora evolução dos Efeitos Visuais: expressivos e com movimentos fluidos, os avatares possuem personalidade e são plenamente convincentes, além de possuírem uma textura palpável (repare nos pixels em forma de losango no rosto deles). Por outro lado, o experiente Alan Silvestri acaba limitando-se a emular o estilo de John Williams, compondo uma trilha sonora que cumpre apenas a função de encaixar-se na embalagem oitentista do projeto.

Por fim, não é exagero aplaudir uma produção como essa por incluir menções, até mesmo, a Cidadão Kane. E já que voltei ao campo das referências, adianto que a abundância é tamanha que provavelmente serão necessárias outras visitas a esse mundo. Indo das mais óbvias (O Iluminado, De Volta Para o Futuro, entre outras) até as mais rebuscadas  (o já citado Rosebud, Gundam e jogos de Atari) passando pelas mais escancaradas (o ‘Cubo de Zemeckis’, que é uma homenagem ao diretor citado lá no segundo parágrafo) e as mais sutis (a de O Exterminador do Futuro 2 é particularmente emocionante), o ritmo é todo ditado por elas, que acomodam-se confortavelmente numa trama que, essencialmente, dialoga com o futuro. Um futuro plausível, diga-se de passagem, o que permite uma imaginativa especulação acerca do próprio videogame em si.

Por fim, depois de agradecer a sua paciência (sei que o texto ficou maior que o normal), esclareço que por mais que o filme possua suas (poucas) imperfeições, como a relação entre Halliday e Morrow, por exemplo, Jogador Nº1 as deixa pequenas demais para serem levadas a sério. A experiência de assistí-lo (principalmente em IMAX), supera eventuais tropeços. Jogador Nº1 é mais do que uma carta de amor escrita cuidadosamente para aqueles que cresceram com videogames e consomem cultura pop até hoje. É uma aventura como há muito tempo não se via, e feita sob medida pelo maior mestre dos blockbusters.

Observação: Não há cenas adicionais.

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Crítico de Cinema e Carioca. Apaixonado pela Sétima Arte, mas também aprecia uma boa música, faz maratona de séries, devora livros, e acompanha futebol. Meryl Streep e Arroz são paixões à parte...