O cineasta mexicano Guillermo Del Toro nunca escondeu seu apreço pela fantasia. E somente alguns de seus filmes não se encaixariam nesse gênero (como Círculo de Fogo), Forma da água cartazo que mostra uma inclinação a tramas fabulescas, mas com um toque pessoal, uma marca registrada identificada em seu olhar apurado para a direção de arte e uma atmosfera sombria que frequentemente serve de contraponto para equilibrar suas produções. A Forma da Água não foge à regra, acomodando-se confortavelmente no território da fantasia, mas também (com o perdão do trocadilho) mergulhando de cabeça na estrutura de fábula.

Não que isso o impeça de discutir temas adultos e/ou complexos, pois também o faz e com distinção. Seu maior mérito, aliás, reside em usar sua fábula como um mecanismo para incluir alegorias que propõem debates absolutamente atuais e pertinentes. Em tempos onde o pensamento radical vai ganhando cada vez mais espaço através de discursos recheados de ódio, não é difícil de entender os motivos que levaram Del Toro a acreditar que prestaria uma espécie de serviço público.

Ao situar a trama nos anos 60, por exemplo o diretor/roteirista constrói o momento perfeito para discutir a discriminação racial, ao escrever uma série de diálogos que, de tão absurdos, quase soam inacreditáveis. Mas ouvir o balconista de uma lanchonete recusar um cliente logo após este demonstrar afeto ao segurar sua mão, é tão absurdo quanto ler alguma postagem mencionando que “homossexuais devem morrer” ou que “gays não devem ser aceitos em locais ‘de família’. Infelizmente, em nossa realidade, ambas as frases são abundantes.

Mas tudo fica pior quando entra em cena o Vilão vivido por Michael Shannon (sim, com “V” maiúsculo), que não demora muito a soltar pérolas racistas como “Deus criou o Homem à Sua imagem e semelhança. Mas ele deve ser mais parecido comigo do que com você”, em uma “conversa” com a personagem de Octavia Spencer. Aliás, em A Forma da Água não há espaço para nuances. Aqui, como num legítimo conto de fadas, um personagem bondoso é construído quase como uma santidade, ao passo que um vilão maligno… bom, este ganha a interpretação de Michael Shannon, que faz jus à alcunha de “Monstro” que recebe em dado momento, impondo uma presença física invejável e exibindo a segurança habitual que o colocou entre os principais atores de sua geração.

Forma da água cena 2

Porém, é mesmo Sally Hawkins quem, de fato, domina o filme, ao se entregar de corpo e alma à Elisa, uma mulher que sonha viver num mundo onde o fato de ser muda não influencie negativamente sua vida. Utilizando o olhar para expressar uma infinidade de sentimentos e, espantosamente, conferindo intensidade à delicada arte de comunicar-se através de libras, Hawkins cria uma figura inocente, pura, sonhadora e, acima de tudo, alguém que não se vê inserido na sociedade (embora se esforce para tal).

O que acaba gerando um paralelo com a criatura interpretada por Doug Jones e que é chamada de “A Forma”: num trabalho magistral de maquiagem que lhe confere um aspecto que a aproxima fortemente do Abe Sapien de Hellboy (também de Del Toro), A Forma é um ser fascinante desde o início, demonstrando inteligência ao aprender a se comunicar e revelando paulatinamente, possuir sentimentos facilmente identificáveis num humano (com a exceção do Vilão, é claro). Nesse sentido, Guillermo Del Toro pavimenta, com facilidade, o caminho que unirá Elisa e a Forma, numa relação improvável e que abre uma série de discussões que vão desde a pergunta “O que nos torna humanos?” a um poderoso comentário sobre a Arte.

Como já era de se esperar de uma obra comandada por Del Toro, A Forma da Água também é um primor técnico, oferecendo um verdadeiro deleite visual através de uma direção de arte espetacular e de uma fotografia precisa. É fascinante perceber a lógica criada por Paul D. Austerberry (Pompéia) e o diretor de fotografia Dan Laustsen (John Wick 2) que separam perfeitamente o universo familiar de Strickland (Michael Shannon), carregado em cores quentes, do restante do filme, principalmente o núcleo da protagonista, que é banhado por variações de um tom de Azul-Petróleo que ecoa o mote da produção. Ao mesmo tempo, a trilha sonora de Alexandre Desplat traz tons melancólicos que ajudam estabelecer uma atmosfera lúdica sem exceder-se ou cair na tentação de guiar os sentimentos do espectador.

Tropeçando ao incluir uma sequência de tentativa de assédio completamente desnecessária e que enfraquece o filme, A Forma da Água também inclui desajeitadamente um subtexto envolvendo uma discussão sobre divindade e que só é (parcialmente) remediado por um elegante e belíssimo monólogo ao final e que amarra perfeitamente a trama, o que, em última instância faz deste longa-metragem digno de todos os elogios quem vem recebendo nos festivais por onde passa.

Resta saber se suas alegorias temáticas serão bem recebidas pelos votantes da Academia.

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Crítico de Cinema e Carioca. Apaixonado pela Sétima Arte, mas também aprecia uma boa música, faz maratona de séries, devora livros, e acompanha futebol. Meryl Streep e Arroz são paixões à parte...

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