Muitos autores de ficção científica usaram Marte como o planeta de origem de temidos invasores que dominariam nosso planeta com tecnologias muito mais avançadas do que a nossa ou mesmo com forças metafísicas que jamais seríamos capazes de entender. Marte sempre esteve presente no imaginário dessa cultura sci-fi e rendeu clássicos da literatura, como os livros de Bradbury e Wells, meus preferidos nesse tema. O que Andy Weir fez de diferente em seu livro Perdido em Marte – que na tradução literal seria “O Marciano” – foi fazer com que um humano fosse o primeiro a colonizar o planeta.
Ridley Scott dirige o roteiro adaptado por Drew Goddard, que conta história do astronauta e botânico Mark Watney (Matt Damon), deixado pra trás numa evacuação de emergência para sobreviver graças a seu conhecimento científico para plantar adubando a terra com as próprias fezes, criar água com a junção de gases e restabelecer comunicação com o planeta natal usando códigos hexadecimais e ondas de rádio.
Com isso, o filme vira uma ode à ciência. Ao fazer questão de explicar detalhes que embasam cada decisão do astronauta e depois de toda a equipe da NASA e demais cientistas, Weir e Goddard parecem querer enfatizar que através da ciência é que somos capazes de coisas extraordinárias. Não é à toa que vemos uma sequência linda de um crucifixo queimado (pois é o único objeto inflamável na base marciana) para que Watney consiga finalizar um experimento fundamental para sua sobrevivência. Por outro lado, os autores equilibram o elemento da fé ao incluir dois planos fundamentais para preservar o aspecto metafísico inerente a seres humanos. Dois momentos acentuam isso: quando o protagonista clama “God! God! God! God!” ao ficar diante de um acidente imponderável e quando outro personagem, ao ser questionado sobre sua crença em deus, responde que é filho de um hindu com uma protestante, e logo acredita em vários.
A cinematografia é do experiente polonês Dariusz Wolski, que cria um contraste enorme usando cores frias para a Terra e quentes para Marte, definindo a distância entre os mundos. Com isso estabelecido, Wolski tem a delicadeza de aplicar os mesmos filtros em Watney na primeira vez em que ele estabelece comunicação com a NASA, uma sutileza que acentua o sentimento de alívio e segurança, aproximando os personagens com o uso das cores. Já no espaço entre os dois planetas, a nave Hermes surge, com ótimos efeitos visuais, como o grande elemento de ficção científica, onde Scott tem a liberdade de brincar em um ambiente que lhe é bastante familiar. Note como ele faz uso da gravidade entre decks e como ele tem ali a oportunidade de criar planos metalinguísticos dentro e fora da nave.
Já em Marte, o diretor leva o espectador a uma visita inesquecível, com planos abertos espetaculares de um planeta hostil, o verdadeiro antagonista do filme que precisa ser superado por Watney a tempo de ser resgatado em uma operação extremamente longa, como fica claro no ótimo trabalho de maquiagem em Damon.
O ator entrega um papel divertido dentro de uma tragédia. Confere um tom leve a um personagem fadado à morte, dosando bem os momentos em que aparentemente chega perto de perder a esperança e o fôlego para lutar pela vida. Não há sequer uma interpretação ruim no elenco de peso escalado para esse filme: Jessica Chastain é a comandante da Hermes (tripulada por personagens de Michael Peña, Kate Mara, Aksel Hennie e Sebastian Stan) que precisa tomar decisões difíceis por conta e risco próprio; Sean Bean e Chiwetel Ejiofor são funcionários do alto escalão da NASA que lutam com políticas internas para resgatar Watney enquanto Jeff Daniels vive o diretor que responde oficialmente por todas as ações da instituição. Há um equilíbrio interessante entre as decisões tomadas em Marte e na Terra e isso é bem desenvolvido pelo roteiro. De um lado, o protagonista precisa de ações imediatas para garantir sua sobrevivência enquanto na Terra as pessoas levam dias pra decidir custos, políticas e aparências para a mídia.
Não é só o roteiro que ajuda na fluidez do filme que poderia ter alguns minutos a menos e cheio de explicações técnicas longas e, tratando-se de sci-fi, até desnecessárias. A montagem do premiado Pietro Scalia por vezes alterna planos semelhantes nos dois planetas pra mostrar o trabalho em equipe na busca de soluções que se apliquem na prática e não somente nos cálculos pra lá de criativos. Scalia quase consegue corrigir uma falha bastante grosseira no desenvolvimento de personagens importantes na trama e sem os quais o desfecho teria sido outro. Muitos personagens secundários essenciais para o desenvolvimento do filme surgem praticamente do nada para solucionar cálculos nas inúmeras reviravoltas que o roteiro de Goddard apresenta sem muito cuidado. Mas isso não chega a atrapalhar o filme com muito mais pontos positivos a se apreciar, como, além do que já foi dito, a trilha sonora com canções escolhidas a dedo. Aqui escorreram lágrimas na virada para o terceiro ato ao som Starman de David Bowie.
Scott lança o espectador pra fora do cinema com um sentimento bom, com uma mensagem positiva e cheia de esperança. Em tempos que vemos alguns governos fecharem as fronteiras para famílias inteiras vítimas de fanatismo político e religioso, Perdido em Marte nos mostra a união de cabeças geniais unidas pelo propósito de salvar uma só vida em uma missão improvável. Um alento, ao menos na ficção. Pois como diz Watney, ali ele estava fazendo algo que amava, algo bonito e maior do que ele. Não é isso que devemos deixar por aí?
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