Quando ouvimos logo na sequência inicial que “o caos é a ordem por decifrar”, já começamos a ser preparados para o que isso realmente quer dizer, ou pelo menos para o caos que seremos submetidos durante a projeção e que permanecerá por algumas horas após a experiência de assistir este excelente O Homem Duplicado.

Para falar obre este filme, dividirei o texto em duas partes, sendo a primeira sem spoilers e a segunda sem ressalvas, portanto oriento que leia o final deste texto somente depois de assistir ao filme. Avisarei quando começarem os spoilers.

Adaptado do livro de José Saramago por Javier Gullón e dirigido pelo canadense Denis Villeneuve (de Os Suspeitos), o suspense fala sobre o professor de história Adam Bell, muito bem interpretado por Jake Gyllenhaal, que descobre o ator Anthony Saint-Claire, seu sósia que atua em filmes locais como figurante e isso o leva a uma obsessão de saber quem é o ator na vida real. E é tenso do início ao fim.

Para construir essa tensão constante, Villeneuve investe em uma sequência inicial enigmática onde vemos o personagem de Gyllenhaal assistir a uma sessão de uma espécie de seita formada só por homens onde duas mulheres nuas constroem um simbolismo sexual presente na narrativa dali em diante. E já nesse momento somos envolvidos por todos os elementos usados pelo diretor ao longo do filme para continuarmos tensos até o desfecho: a fotografia de Nicolas Bolduc mergulhada em um amarelo desgastado, a trilha sonora incômoda e incessante de Danny Bensi e Saunder Jurriaans e a presença de… aranhas. Esses três elementos são responsáveis por nos manter presos ao personagem porque nos sugerem que é o subjetivo dele, é como ele vê o mundo, é o que ele ouve o tempo todo.

Com isso estabelecido, passamos a ver a belíssima cidade de Toronto com uma fotografia pálida, sem vida, bem diferente do que é na verdade. Mesmo as locações escolhidas escondem a beleza da cidade, tanto nos planos abertos quando nos planos fechados a ponto de escolher áreas externas com predominância de concreto ou obras e construções, pois é só o que o protagonista vê. Mais do que isso, é frequente o uso de objetos duplicados, como bancos de praça e mesmo prédios iguais, para estabelecer a ideia padrão que envolve o protagonista. Isso ganha peso com o figurino dos personagens, que trato na segunda parte deste texto.

Também eficientes em suas respectivas atuações, Mélanie Laurent (de Bastardos Inglórios) como Mary, namorada de Adam Bell, e Sarah Gadon como Helen, esposa grávida de Anthony Saint-Claire, as coadjuvantes contribuem para tornar a narrativa cada vez mais enigmática, o que é outro ponto forte do roteiro que leva o espectador a mais perguntas em vez de dar respostas ao que significa realmente a relação de duplos que se estabelece entre o professor e o ator.

A partir do momento em passamos a acompanhar os dois personagens de Gyllenhaal, o montador Matthew Hannan entrega um memorável trabalho ao conduzir o enigma de modo a confundir ainda mais o espectador, que ora acreditará que de fato são duas pessoas diferentes e ora acreditará que o personagem central sofre de esquizoidia. E mais: ainda que o espectador suspeite que o personagem sofra de transtorno de personalidade, nunca tem a chance de afirmar se é Adam ou se é Anthony o personagem real, e aqui vale citar um genial plano de Villeneuve que, ao mostrar um deles retirar a aliança de casamento da mão direita diante de um espelho, posiciona a câmera “dentro” do espelho atrás do que seria o reflexo de Gyllenhaal. Uma belíssima sutileza que pra mim é a chave para entender o filme.

E não é a única sutileza empregada pelo diretor. Todos os planos que envolvem a aranha do início do filme trazem subjetividade do protagonista, como fica muito claro em todos os momentos pelo aspecto dos animais. Mas é no terceiro ato que percebemos como Villeneuve foi inteligente ao empregar as aranhas quando o diretor exibe um plano detalhe de um vidro quebrado que remete diretamente à forma de uma teia de aranha e então temos a revelação do enigma.

É um filme espetacular, desses que ficam na cabeça um bom tempo procurando as pistas espalhadas pela narrativa. A partir daqui, vou colocar minha interpretação e revelarei coisas importantes do filme, portanto sugiro que volte ao texto após assistir ao filme.

[separator type=”lightning”]

Colocando ordem no caos (e spoilers em ordem!)

A sequência inicial que envolve mulheres nuas e aranhas diante de uma plateia masculina é a metáfora para o transtorno de Anthony, que ali projeta seus desejos e fobias. Isso fica claro ao compararmos as mulheres daquela sala com as mulheres na vida do protagonista através de planos detalhe, por exemplo o sapato vestido por Mary quando ele a persegue no ônibus, bem como as aranhas, que são alucinações pesadas, como aquela gigante que anda sobre Toronto. Vale estabelecer desde agora que Anthony tivera outro nome artístico, o que é uma coisa normal, mas que se encaixa nessa narrativa com um passado frustrado de ser um ator (como sugere o diálogo com a mãe, os trabalhos que fez e o tempo que ficou afastado da produtora) e a partir daí desenvolveu o distúrbio de personalidade, dessa vez como Adam Bell.

O figurino sempre igual do professor de história, suas repetidas aulas e a inexistente relação com seus alunos até o plano interessante onde o vemos sozinho na sala de aula mostram o quê e como agia Anthony quando assumia a personalidade de Adam. Logo, seus alunos, assim como Mary , também faziam parte de outro quadro, a esquizofrenia.

Consciente da condição do marido, Helen sempre observa cada atitude estranha com muita pena e compaixão, principalmente quando descobre a nova “identidade” na internet e vai até a universidade onde provavelmente há um professor com aquele nome, que Anthony assumira para passar as tardes ali sozinho. Nessa sequência há um tocante diálogo entre marido e mulher quando ela percebe que ele está completamente tomado pela outra personalidade e pergunta o tempo de gravidez. Em seguida, Adam se despede e volta para o prédio, ela então tem a súbita ideia de ligar no celular do marido e só ouvimos a voz de Gyllenhaal quando o professor sai do nosso campo de visão, o que dá a resposta a Helen, mas não ao espectador.

O roteiro bem lapidado tem o cuidado de usar a tecnologia a favor do suspense. Quando Adam pesquisa o nome do ator, logo consegue encontrar fotos e a agência onde está cadastrado, e quando Anthony e Helen pesquisam por Adam, encontram apenas uma lista de professores, sem imagens, o que sugere que o protagonista adotou esse nome para fugir em sua fantasia.
Helen é uma personagem tão complexa quanto o marido. Seu arco também é intrigante especialmente porque ao final ela prefere Adam ao marido, pedindo para que ele fique. Então temos a sequência do acidente de carro onde, na cabeça do protagonista, Anthony e Mary são mortos e o vidro quebrado forma a imagem de uma teia de aranha com os dois dentro.

E então temos o plano final quando vemos a aranha gigante no quarto de Anthony, temos enfim a certeza de que o protagonista é doente e que sua condição se repetia há tempos, como indicara seu texto durante suas aulas. Como o filme é a partir do ponto de vista de Adam, o professor, somos levado a crer que o ator é a projeção do seu transtorno quando na verdade é (quase) o contrário, e esse é um grande mérito da adaptação.

O Homem Duplicado (Enemy)

Direção: Denis Villeneuve
Elenco: Jake Gyllenhaal, Mélanie Laurent, Sarah Gadon
Roteiro: Javier Gullon
 

[youtube video=”l4bImzL7i1Q” width=”600″]

Author

Escritor e Crítico Cinematográfico, membro da Associação Paulista de Críticos de Arte e da Sociedade Brasileira de Blogueiros Cinéfilos.

Comments are closed.