O que esperar de um filme que envolve a união inesperada de criminosos com habilidades especiais que possivelmente salvarão o universo, um vilão que tem o objetivo de destruir tudo, um artefato superpoderoso capaz de desequilibrar o conflito e a sugestão de um romance entre o herói e aquela personagem interpretada pela atriz mais conhecida? Tudo pra dar errado com uma promessa de clichês atrás de clichês, não é? E então Guardiões da Galáxia surge como uma adorável e divertida experiência, pois surpreende e acerta em tantos níveis que faz jus a estar entre os grandes sucessos da Marvel sem ressalvas.

Com algumas bombas no currículo como as duas adaptações de Scooby-Doo, James Gunn dirige e assina o roteiro, também escrito pela estreante Nicole Perlman. E se sai muito bem. Guardiões da Galáxia é uma adaptação dos quadrinhos com profundas mudanças na origem dos personagens e na maneira como formam o grupo, bem como na trama que envolve os vilões e outros personagens importantes para desenvolvimento da narrativa. Logo nos primeiros minutos conhecemos o protagonista Peter Quill na infância, quando testemunha a morte de sua mãe momentos antes de ser abduzido por um grupo de caçadores de recompensas liderados por Yondu Udonta (Michael Roocker, mais conhecido pelo seu trabalho em The Walking Dead). Anos depois, é preso ao tentar vender um artefato misterioso e durante a confusão conhece os alienígenas que serão seus parceiros durante a aventura: a habilidosa Gamora (Zoe Saldana), o inteligente guaxinim cibernético Rocket (voz de Bradley Cooper) e seu guarda-costas Groot (voz de Vin Diesel). Na cadeia, conhecem o quinto integrante do grupo, o grandalhão Drax (Dave Bautista) enquanto do outro lado da história, o antagonista Ronan (Lee Pace) e seus dois capachos Nebula (Karen Gillan) e Korath (Djimon Hounsou) tentam capturar o artefato que pode dar poderes ilimitados ao vilão, roubado por Quill (em ótima interpretação de Chris Pratt) logo no início do filme.

É muito bacana que em uma história cheia de ação, perseguições, explosões e combates entre naves espaciais Gunn encontre espaço para desenvolver (muitos) personagens interessantes, tridimensionais e sobretudo convincentes. Os cinco guardiões são desenvolvidos com bastante cuidado e com recursos que movem a narrativa sem apelar tanto para diálogos expositivos o tempo inteiro. Assim, conhecemos a personalidade e as habilidades de cada um em cenas que não foram incluídas somente com esse propósito, mas que são pequenos episódios importantes no filme com ações perfeitamente verossímeis dentro daquele universo construído pelo diretor. Cada personagem tem o seu grande momento (não vou citá-los para evitar spoilers), mas é Groot que surpreende em termos de linguagem, o que mostra o cuidado do diretor ao transformar um personagem plano, daqueles que não esperamos muita coisa, em um personagem fascinante e cheio de segredos revelados em momentos importantes (o que me lembra muito o desenvolvimento do personagem Hodor de Game of Thrones que analisei aqui). O mais interessante na construção dos arcos dos heróis é a naturalidade que o roteiro leva todos à missão principal do filme sem que qualquer um precise forçar um discurso de vamos-salvar-a-galáxia à toa – e quando isso quase acontece, já os conhecemos o bastante para rir da solução cômica de Gunn para evitar uma pieguice que afundaria o filme.

Não é só o carisma dos personagens que move Guardiões da Galáxia. O design de produção é competente ao criar cenários com uma relação harmoniosa entre o figurino de todos, constantemente imersos em cenários escuros espalhados no universo e em naves espaciais. As cores assumem papel importante para que o espectador se situe nas diferentes locações visualmente parecidas, além de suavizar a transição da prisão onde todos estão de amarelo para outros lugares, já vestidos com seus figurinos definitivos, por exemplo. Aliás, tanto a maquiagem quando a concepção digital dos personagens estão muito equilibradas, o que vale destaque nos olhos expressivos de Groot, personagem digital, em contraste com a total frieza nos olhos de Nebula, de maquiagem física. O design externo das naves também é repleto de simbologia, como uma nave que remete a uma cadeia de DNA e outras que vistas por trás se parecem com estrelas (e, juntas, constelações) que, também, fazem referência a outro personagem do mesmo universo, o capitão Mar-Vell.

Por falar em referências, vale ficar atento a rimas visuais e planos elegantes, como corpos flutuando no espaço e na água, além de outro quadro envolvendo o personagem Groot que esteticamente remete ao orbe que guarda a tal poderosa energia que o vilão Ronan busca para concluir seu objetivo.

No aspecto sonoro, Gunn ainda acerta em cheio ao incluir no roteiro uma fita cassete da década de oitenta. Apesar de parecer um mero detalhe, a fita funciona como outra rima narrativa com o objeto desejado por todos por ser ela mesma um artefato capaz de conectar o protagonista à sua infância (leia-se, seu universo particular), também serve de pretexto em um momento para estabelecer a confiança de Quill com o grupo e de quebra permite que o diretor inclua as músicas nela gravadas na trilha do filme de maneira muito criativa. E sim, a fita é um artefato perdido naquele universo, uma vez que sua origem é a Terra, um planeta distante de tudo o que vemos na narrativa, e nela há um registro da nossa civilização. Manter nosso planeta afastado de tudo também beneficia a narrativa e faz com que Quill seja, ali, o único representante de sua espécie entre tantos outros alienígenas. Por um lado conhecemos suas limitações humanas e por outro suas ações lhe conferem o status de super-herói aos nossos olhos, o que me leva a uma cena memorável de Yondu que, tendo sido mentor de Quill desde que saiu da Terra, justifica de onde vem tanta habilidade.

Competente em todos esses aspectos, o desfecho deixa uma ótima sensação no espectador e Gunn ainda tem a elegância de incluir o único plano que remete a dramas reais, onde o personagem de John C. Reilly abraça os filhos e passa a imediata mensagem antirracista naquele mundo tão distante do nosso.

É um filme com ótimo equilíbrio de ação, drama e comédia, capaz de empolgar nas batalhas, emocionar em alguns momentos dedicados à construção dos personagens principais e arrancar risos com piadas orgânicas e inspiradas, especialmente quando Rocket está em cena. Vale a pena ver em 3D, especialmente pelas cenas no espaço aberto e na batalha do terceiro ato, onde o recurso contribui até onde pode para a narrativa (lembremos sempre que os planos devem funcionar para 2D também) e não é só usado para a estética. Ao final, como toda produção da Marvel, há cenas pós-créditos. Mais um ponto pra eles.

 

 

Author

Escritor e Crítico Cinematográfico, membro da Associação Paulista de Críticos de Arte e da Sociedade Brasileira de Blogueiros Cinéfilos.