Hollywood

Com quase 30 anos de carreira, os filmes de Quentin Tarantino já exploraram diversos assuntos, desde as relações problemáticas de um grupo de criminosos, passando pela pura vingança de uma noiva e chegando até mesmo a tocar em temas mais fortes como a escravidão e o antissemitismo. Porém, por mais que Tarantino varie suas premissas, a vingança acaba aparecendo com maior frequência em seus trabalhos, sempre acompanhada de uma alta dose de violência e fartos diálogos. Por outro lado, em Era Uma Vez em… Hollywood, nono longa-metragem do realizador estadunidense, o banho de sangue e a verborragia permanecem, mas dividem espaço com um inesperado tom de camaradagem que permeia toda a narrativa. Talvez esta seja a primeira vez que o carinho entre personagens toma conta de um roteiro escrito por Quentin Tarantino.

Roteiro este que acompanha a trajetória de Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), um astro da TV americana que experimenta o início do declínio de sua carreira, e seu dublê Cliff Booth (Brad Pitt) devotado parceiro de longa data que já se encontra confortável na posição que ocupa como subalterno. Em paralelo, a trama também apresenta a atriz Sharon Tate (Margot Robbie) em sua agitada vida na Los Angeles do final da década de 1960.

Investindo pesado na ambientação, Tarantino não economiza nas referências para situar o espectador. E a densidade é tamanha que não demora até estarmos completamente imersos na cultura daquela época, através de elementos que vão desde a reconstituição de ruas e bairros até a presença de cinemas clássicos e pontos característicos da geografia do lugar como o prédio da Capitol Records ou as colinas que abrigam mansões luxuosas. Ademais, o cineasta/roteirista inclui uma série de cartazes de filmes clássicos e apela também para recursos sonoros, como propagandas de rádio. 

No entanto, ainda que seu esforço seja notável, em vários momentos passa-se a impressão de excesso, com um fluxo convoluto de informações visuais que acabam distraindo muito mais do que agregando. Sim, é divertido ver homenagens a seriados clássicos como Bonanza, Combate!, O Agente da U.N.C.L.E. e tantos outros, mas às vezes o resultado parece mais uma prova do amor de Tarantino pela época retratada do que qualquer outra coisa, o que não deixa de ser um ponto negativo.

O filme também peca na trilha sonora, visto que o desejo insaciável de incluir um número exagerado de canções gera um outro problema a partir do momento em que se esgotam suas justificativas: note a quantidade de vezes em que personagens são mostrados escutando música no carro ou ligando o rádio em casa e perceba, também, como Tarantino não vê problema em saltar de uma música para outra indiscriminadamente, aumentando a sensação de caos sonoro e dificultando a tarefa de criar uma unidade musical (não há).

Claro que isso não impede o cineasta de construir impecavelmente uma história sem precisar, necessariamente, estar preso a uma trama. Assim, Era Uma Vez em… Hollywood revela-se muito mais como um retrato de uma época do que um conto convencional. Para não perder o público de vista, Tarantino brinda seu espectador com protagonistas que nutrem uma relação tão afetuosa que mal acreditamos estar diante de uma obra “escrita e dirigida por Quentin Tarantino”.

Para isso, Leonardo DiCaprio e Brad Pitt são peças fundamentais, e constroem a amizade de Rick e Cliff com base em traços opostos, mas sem perder a camaradagem.. Enquanto DiCaprio compõe o primeiro como uma pessoa insegura e extremamente rigorosa com seu próprio trabalho, Pitt converte Cliff numa figura consciente de seu papel no mundo e confortável com ele, permitindo-se até um certo grau de autoconfiança. E se Leonardo DiCaprio, como não poderia deixar de ser, se sai admiravelmente bem ao explorar as nuances de seu personagem – voltando a destacar sua faceta cômica, assim como aconteceu em O Lobo de Wall Street – Brad Pitt surge ao mesmo tempo preso e despojado: preso a uma composição vocal que lembra demais o Tenente Aldo Raine de Bastardos Inglórios (sua parceria anterior com Tarantino) e despojado ao conferir um ar despreocupado a Cliff, beneficiando-se do pano de fundo ambíguo conferido ao personagem e que gera dúvidas ao espectador.

Já Margot Robbie pouco faz além de transformar Sharon Tate na personificação da inocência, passeando para lá e para cá enquanto carrega um largo sorriso no rosto e exala simpatia por onde passa, seja uma festa numa mansão glamourosa ou um charmoso cinema de rua. A presença de Tate, vale ressaltar, insere uma camada extra de expectativa. Afinal, todos conhecemos seu trágico destino e as esporádicas participações de Charles Manson e seus seguidores reforçam essa ideia. E como já se tornou frequente na obra de Tarantino, diversos de seus colaboradores podem ser vistos em pequenas participações, como Michael Madsen, Bruce Dern, Zoe Bell e Kurt Russell.

Irrepreensível tecnicamente, a produção apresenta mais um trabalho sólido de Robert Richardson, premiado diretor de fotografia e colaborador de Tarantino em seus últimos cinco longas-metragens: investindo numa paleta de cores quentes, Richardson captura o tom nostálgico e envelhecido conferindo um véu tropical à Los Angeles da obra, num esforço louvável e que é corroborado pelo excelente design de produção supracitado.

E se descrever o trabalho de Quentin Tarantino como “excelente” é chover no molhado, espere até ver a sequência que se passa num velho rancho, onde o cineasta é capaz de evocar tensão apenas com movimentos precisos de câmera e o uso pontual de trilha incidental (repare também em como ele utiliza os acordes vindo de uma TV antiga para embalar a cena que se passa no interior de uma casa). Essa passagem específica, diga-se de passagem, não só é um atestado da versatilidade do diretor, como representa um momento-chave da narrativa, pavimentando todo o caminho até o desfecho, sendo curioso como a tensão é construída sem perder o humor de vista.

Desenvolvendo cada aspecto da narrativa com o cuidado e a paciência dignos de um mestre veterano, Tarantino realiza aqui um de seus trabalhos mais ternos e suaves. E mesmo que se descontrole com alguns recursos, é inegável que estamos diante de um profissional ainda com o pleno domínio de seu ofício.

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Crítico de Cinema e Carioca. Apaixonado pela Sétima Arte, mas também aprecia uma boa música, faz maratona de séries, devora livros, e acompanha futebol. Meryl Streep e Arroz são paixões à parte...

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