Estamos no Líbano. O ano é 2018. Em um tribunal, vemos um casal na faixa dos cinquenta anos de um lado, e uma criança algemada do outro. Um menino contra seus pais. O motivo? Ter sido colocado no mundo.Não bastasse essa premissa forte, o novo filme da cineasta libanesa Nadine Labaki (do bom Caramelo) revela-se uma verdadeira montanha-russa de emoções, com subidas e descidas cada vez mais intensas.

Festival do Rio

O tal garoto é Zain, que aos 12 anos trabalha numa mercearia e ajuda em casa com seus irmãos mais novos e sua irmã Sahar, um ano mais nova e que inspira cuidados por estar “desabrochando”. Vivendo num bairro pobre e sem perspectiva, Zain toma a decisão de iniciar os estudos, mas é imediatamente repreendido pelo pai.

“Ele ganha mais trabalhando, aprender algumas palavras não adiantará de nada”, diz o homem.

Para piorar, a mãe só manifesta interessa pela ajuda de custo que viria a ser dada pelo governo. Mais, num belo dia, Zain descobre que seus pais estão negociando o casamento de Sahar, que renderá algumas galinhas e algum prestígio com o dono da mercearia local. Sim, a situação se agrava ainda mais, com Zain fugindo de casa à procura de condições melhores, não encontrando muito além de miséria e solidão pelo caminho.

Como é possível perceber, Nadine Labaki não economiza as lágrimas do espectador, ao mergulhar Zain num profundo caos. A cineasta, acostumada a alfinetar os costumes de seu país, volta sua câmera afiada para as condições de vida de seu próprio povo, que não se incomoda de ter suas crianças trabalhando e famílias crescendo desproporcionalmente ao seu sustento.

Por falar em criança, Zain Al Rafeea é o destaque inquestionável do projeto, revelando-se um verdadeiro achado, uma pérola do Cinema recente: extremamente expressivo e exibindo uma naturalidade que deixa veteranos no chinelo, Al Rafeea carrega todo o filme sem o menor sinal de intimidação ou hesitação, ganhando força com os diálogos poderosos do roteiro. E vê-lo lamentar o casamento da irmã ao argumentar que “ela é só uma criança” é tão doloroso quanto a constatação de que ele há muito tempo perdeu o direito de ser (também) uma criança.

Emocionando com pequenos gestos que incluem uma preocupação legítima em ajudar a irmã a esconder os sinais de sua primeira menstruação, Zain também é capaz de provocar fortes emoções apenas através da expressão facial, o que não deixa de ser impressionante. E o que dizer do bolo (ou dois terços de um) que é roubado para a singela comemoração de um aniversário?

Construindo um ritmo que acompanha a trajetória do menino rumo ao fundo do poço, a produção é inteligente ao exibir uma estrutura que se divide entre o grande flashback da história principal e breves sequências do presente (no tribunal), rendendo aplausos a Nadine Labaki pelo invejável domínio da narrativa. Para chegar a esta constatação, basta notar que a cada vez que a narrativa parece se perder, surge uma informação no tempo presente que automaticamente indica outra pista para uma possível correção de curso.

Afastando qualquer traço de leviandade ao dar voz a todos os lados da história, Capharnaüm é a estrondosa confirmação de Nadine Labaki como uma das grandes cineastas contemporâneas, chegando à maturidade de uma carreira em seu terceiro filme. Verdade seja dita, só pela descoberta de Zain Al Rafeea, Labaki já merece todos os prêmios possíveis.

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Crítico de Cinema e Carioca. Apaixonado pela Sétima Arte, mas também aprecia uma boa música, faz maratona de séries, devora livros, e acompanha futebol. Meryl Streep e Arroz são paixões à parte...

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