Concebido numa época onde os filmes de super-herói eram tratados como meras bobagens feitas sob medida para crianças, Corpo Fechado trazia como maior surpresa justamente sua abordagem desse tema, já que tratava com absoluta seriedade o universo dos quadrinhos.

Vidro

Mais do que isso, Unbreakable (no original), não hesitava em explicar elementos característicos das HQs apenas para introduzi-los de forma orgânica e até mesmo fascinante em sua trama, que por sua vez era protagonizada por atores do calibre de Samuel L. Jackson e Bruce Willis. Portanto, o sucesso da obra foi mais do que merecido e uma continuação passou a ser vorazmente desejada. 

Assim, 16 anos depois, veio Fragmentado, longa estrelado por um inspiradíssimos James McAvoy que trazia em seu terceiro ato uma reviravolta que revelava uma surpreendente e improvável ligação com Corpo Fechado. Foi a forma que o diretor e roteirista M. Night Shyamalan encontrou para tornar possível a tão sonhada continuação do filme de 2000.

Mais três anos se passaram e o momento finalmente chegou: David Dunn (Willis) e Samuel L. Jackson (Sr. Vidro) finalmente se reencontraram e agora estão acompanhados também por Kevin e suas 24 personalidades (James McAvoy).

O problema é que quando Corpo Fechado estreou, os filmes de super-heróis não eram o subgênero que representam hoje. Se no início do milênio era difícil Hollywood produzir mais que uma adaptação de quadrinhos por ano, hoje em dia é implausível imaginar um ano com menos de três ou quatro produções focadas em seres super-humanos.

Por isso, Vidro já parte de uma premissa datada, obsoleta onde os tempos são outros. Antes era divertido acompanharmos os longos monólogos do vilão de Samuel L. Jackson, cheios de referências à estrutura dos quadrinhos. Hoje, isso já passou longe de ser considerado algo inovador, pois já tivemos filmes muito bem sucedidos e maduros com a mesma proposta (vide O Cavaleiro das Trevas, Watchmen e tantos outros).

Exatamente por isso, depois de longas cenas em silêncio, quando o Sr. Vidro finalmente abre a boca para falar das “regras” das histórias em quadrinhos, não sofremos o impacto que Shyamalan tanto trabalhou para provocar.

Esse sentimento de falta de novidade permeia toda a obra, mas é agravada pela decepcionante estrutura narrativa adotada pelo outrora promissor diretor/roteirista. Logo depois de um início animador, somos obrigados a testemunhar várias e várias sequências em que o trio protagonista é submetido a longas entrevistas de uma suposta psicóloga “especialista em indivíduos que pensam serem super-heróis” (Sarah Paulson), determinada a convencer não apenas os personagens como também ao espectador de que tudo não passa de trucagens da mente. Para entender meu argumento, basta pensar num filme dos Vingadores onde os heróis passam o tempo todo numa sala sendo convencidos de que não são super-heróis.

A frustração pelo precioso tempo desperdiçado gera irritação quando percebemos que Shyamalan, na verdade, já não conta mais com o hábito de possuir uma carta na manga. Vidro é exatamente isso e o cineasta é tolo o bastante para acreditar que conseguiria fazer o público cogitar a possibilidade de questionar o que foi visto e comprovado em dois longas-metragens. Se Shyamalan é desonesto, tolo, incompetente, ou tudo isso junto, não importa, pois o mais grave é que o indiano aparentemente não tinha o que dizer e decidiu unir o primeiro e o terceiro atos com uma encheção de linguiça que não extrai nada do espectador a não ser bocejos de tédio.

Infelizmente a maior vítima disso tudo (além do espectador esperançoso) é James McAvoy: depois da performance absolutamente avassaladora em Fragmentado, quando impressionou ao transitar com extrema facilidade por uma dezena de composições diferentes, o ator escocês é obrigado a ceder tempo de tela a seus colegas. Assim, embora ainda tenhamos o deleite de vê-lo convencer como uma criança de 9 anos e segundos depois soar como uma mulher controladora ou um homem com TOC, são tantas outras personalidades que lamentamos o fato de jamais podermos acompanha-lo.

Em outras palavras, o Kevin Wendell Crumb de McAvoy continua a ser arrebatador, mas Shyamalan parece não entender que ele é o melhor e mais rico personagem de Vidro. Com isso, ao invés de nos aprofundarmos na mente de Kevin, nos contentamos com uma espécie de show de James McAvoy, visto que suas motivações são meramente auxiliares.

Por falar em auxiliares, Bruce Willis e Samuel L. Jackson, antes soberbos como pessoas diametralmente opostas, passam a maior parte do tempo confinados ou submetidos às enfadonhas conversas com a psicóloga vivida por Sarah Paulson. O arco dos seres díspares que se completavam, dá lugar a um repeteco de composições que dessa vez já não se justifica, fazendo com que Shyamalan os utilize apenas para explorar seus poderes.

E se Sarah Paulson surge propositalmente mecânica, presa a uma dicção fiel às práticas terapêuticas, Anya Taylor-Joy limita-se a um papel secundário que alterna entre o de acalmar a Fera e o de fazer ligações com os quadrinhos (literalmente), o que não deixa de ser desapontador vindo de uma atriz que já provou merecer papéis mais desafiadores (como em A Bruxa).

O que nos leva ao nome responsável por tudo isso, M. Night Shyamalan: depois de ter recuperado parte de seu prestígio (como autor) com Fragmentado, Shyamalan volta a mostrar segurança suficiente para retomar sua antiga tradição de surgir em pequenos papéis em suas narrativas. Infelizmente, o indiano não retoma sua mais celebrada tradição, que consistia em reservar uma grande reviravolta para o terceiro ato.

Aqui, na verdade, tudo remete à falta de conteúdo apresentado pelo filme, afinal, como surpreender o público se não há o que mostrar? Essa sensação de vazio ganha proporções ainda maiores conforme a projeção se aproxima do fim, quando ainda sobrevive aquela ponta de esperança por uma surpresa. Mas nada feito.

Shyamalan demonstra deficiências como roteirista, deixando escapar buracos narrativos que vão se tornando impossíveis de ignorar à medida que se acumulam. Seguranças externos de uma instituição perigosa que demonstram despreparo (passivos, nem sequer usam a arma diante da ameaça), pacientes de alta periculosidade que são vigiados por apenas um enfermeiro (e um guarda que sequer faz rondas), fugas implausíveis, e por aí vai. Isso para não mencionar os argumentos risíveis utilizados pela Dra. Staple para explicar os poderes dos protagonistas (a partir de agora passarei a observar alpinistas para ver se consigo escalar paredes sozinho).

Já como diretor, há lampejos do início de carreira de Shyamalan, como a movimentação elegante da câmera ou a construção precisa da atmosfera, através do suspense quase sempre bem conduzido. Digo “quase sempre”, pois aqui o diretor às vezes padece da própria escolha de manter o ritmo sempre lento, principalmente durante o segundo ato. Quando logra êxito, Shyamalan merece elogios pela boa utilização da ótima trilha sonora de West Dylan Thordson (Fragmentado), que consegue evocar um clima sombrio, mas sem pesar a mão ou apelar para acordes estridentes.

Outro elemento digno de nota é o aproveitamento das cores, algo que com que M. Night Shyamalan sempre se preocupou ao longo da carreira. É divertido, por exemplo, notar como a vilania é representada pelo roxo e o heroísmo pelo verde, ganhando representações literais através de um letreiro numa loja de quadrinhos e sendo refletida no figurino dos personagens e na direção de arte.

O Sr. Vidro, por exemplo, ao entrar em ação, assume um terno mergulhado em tons de roxo (não esquecer que trata-se de uma cor já relacionada ao perigo) e até mesmo sua casa exibe traços nessa cor (mesmo sem sua presença). Assim, quando ao final observamos o filho de David Dunn usando um casaco verde, sentimos alívio, já que esta é a cor dominante do figurino de seu pai. A cor utilizada por Wendell? Amarelo, pois apesar da monstruosidade representada por uma de suas personalidades, fica claro que trata-se de um homem atormentado (fora que há outras personalidades mais… amigáveis). 

Já as cenas de ação são um verdadeiro embaraço e denunciam a falta de imaginação de Shyamalan para as sequências de luta. Com isso, os embates entre a Fera e o Vigilante não passam de um jogando o outro contra a parede, com a câmera do diretor fixada no rosto de um deles e assumindo-se como subjetiva. Ou seja, nem a modesta coreografia corporal nós conseguimos ver.

Por essas e outras, é com tristeza e um quê de desapontamento testemunhar um artista ainda com dificuldades de se afastar da lama do fundo do poço. Houve progresso, é verdade, mas em seus melhores momentos, Vidro é um filme pedante e fútil que julga-se inteligente por apontar elementos que há anos já estamos acostumados a ver nas telonas. Nos piores, é a constatação de um autor que não tem absolutamente nada a dizer. 

Author

Crítico de Cinema e Carioca. Apaixonado pela Sétima Arte, mas também aprecia uma boa música, faz maratona de séries, devora livros, e acompanha futebol. Meryl Streep e Arroz são paixões à parte...

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