Em setembro do ano passado, um vídeo rapidamente viralizou na internet, mostrando uma criança interagindo com um homem nu durante uma apresentação no Museu de Arte Moderna de São Paulo. O tal “homem nu” era Wagner Schwartz, um coreógrafo que realizava uma leitura interpretativa de “Bicho” de Lygia Clark e a criança (uma menina de aproximadamente 5 anos), mesmo acompanhada da mãe, havia sido incentivada a participar da interação apesar do aviso feito pelo Museu sobre a presença de nudez artística.
A repercussão imediata, claro, gerou intensa discussão na Sociedade e, entre aqueles que defendiam a liberdade artística e os outros que faziam acusações de “incentivo à pedofilia”, o debate parecia longe de um consenso: Afinal, quais são os limites da Arte? Essa discussão, diga-se de passagem, é exatamente o objeto de estudo de The Square – A Arte da Discórdia, produção sueca dirigida por Ruben Östlund e que me lembrou instantaneamente do caso supracitado.
Mas a questão da liberdade artística não é a única reflexão proposta pelo ambicioso roteiro escrito pelo próprio Östlund, que oferece comentários ásperos sobre o senso de comunidade, critica ferozmente os arroubos moralistas da Sociedade (não só brasileira, como do mundo) e, tudo isso, sob a ótica do multifacetado Christian (interpretado pelo dinamarquês Claes Bang), o curador de um museu de arte em Estocolmo (a Arte imitando a vida) que, ao inserir-se nesse contexto, também nos coloca à mercê de uma série de situações que, de tão absurdas, acabam tendo efeito cômico.
E Östlund extrai humor com elegância e inteligência, sempre utilizando as gags em prol da trama (e não o contrário). Sendo assim, ao vermos inicialmente pedintes sendo ignorados por pessoas bem vestidas num local movimentado da capital sueca, não demora até que o próprio protagonista se torne uma vítima ao também ser ignorado. Além da eficaz crítica social, Östlund não se furta em provocar risos ao mostrar o sofisticado método de alguns bandidos para tomarem o celular de Christian. Vê-lo desesperado pedindo ajuda, espelha a situação dos pedintes, evidentemente, além de ganhar contornos cômicos graças à situação e à boa performance de Claes Bang.
Não só isso, a grande exposição pela qual Christian é responsável (e que dá nome ao filme) é uma pertinente reflexão sobre a moralidade, mas, novamente, não é jogada ao acaso, propiciando mais uma deixa perfeita para o humor mordaz de Östlund. E o que dizer da palestra que é interrompida várias vezes por um homem que (sofrendo de Síndrome de Tourette) insiste em gritar palavrões?
Além do casamento exemplar entre a reflexão e a comédia, The Square também merece elogios por suas belas atuações, a começar por Claes Bang, que vive o protagonista com a combinação perfeita de inocência e inteligência e sua performance naturalista é essencial para gerar empatia, caso contrário, não seria difícil transformar Christian numa figura repugnante em função de seu egocentrismo latente.
E se Dominic West faz uma pequena (mas eficiente) ponta, Elisabeth Moss (da finada série Mad Men), confere personalidade e carisma a Anne, ao passo que Christopher Læssø diverte como o inconsequente Michael. Porém, o grande destaque mesmo é Terry Notary que, conhecido pelo motion capture dos símios de Planeta dos Macacos, faz de sua única cena o momento mais marcante de toda a produção, graças à sua atuação, literalmente, animalesca.
Essa sequência, vale ressaltar, resume bem a intenção de Östlund em promover um olhar sobre o comportamento dos indivíduos durante a fragilidade (em qualquer sentido) de outrem. Isso nos faz retornar à cena dos mendigos que são ignorados, já que não é raro passarmos por pedintes como os vistos em The Square, sem ao menos nos importarmos em encará-los. E essa é uma ferida que o cineasta sueco não hesita em cutucar, expondo facetas que a Sociedade procura fingir que não existem.
Por esse motivo, o arco dramático de Christian merece aplausos, já que esculpe, com perfeição, a figura de um homem que, inicialmente, dá de ombros aos problemas de seus semelhantes, mas que, ao provar dessa falta de empatia, compreende a necessidade de sentir a tragédia alheia. A questão não é não se importar, pois Christian nunca deixou disso, e sim de reconhecer a indiferença e fazer algo para mudar, pois são exatamente os pequenos gestos que podem levar a grandes mudanças.
E independentemente de questões referentes à natureza da Arte ou seus limites (já que pode-se concordar ou não), o maior legado deixado por The Square é sua valiosíssima lição de humanidade/igualdade. Afinal, ricos ou pobres, esclarecidos ou não, somos todos humanos, acima de tudo (e de qualquer coisa).
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