De comediante de sucesso a diretor de filmes de terror, essa é a trajetória de Jordan Peele, cineasta e roteirista responsável por este Nós, e que conquistou prestígio mundial com sua célebre estreia, o impactante Corra! (Get Out, no original), longa-metragem que não só conquistou o público, como arrebatou a crítica, recebendo quatro indicações ao Oscar e rendendo o prêmio de Melhor Roteiro Original a Peele, como reconhecimento de um talento recentemente revelado. Com Us (no original), o realizador não apenas comprova a escolha certeira da Academia, como se consolida na indústria.
Se em Corra!, o norte-americano aproveitava os mecanismos do terror para construir uma ácida crítica ao racismo da sociedade de seu país, agora ele expande seu escopo. Os Estados Unidos são novamente seu alvo, mas desta vez ele utiliza a arma mais poderosa do gênero que o revelou: a alegoria. Através dela, Peele vende um discurso incômodo escondido sob a embalagem de horror fantástico.
A narrativa começa em 1986, com uma típica família afro-americana visitando um parque de diversões num píer. Enquanto o pai (Yahya Abdul-Mateen II, de Aquaman) se distrai numa atração e a mãe (Anna Diop, da série Titãs) vai ao banheiro, acompanhamos a jovem Addy (Madison Curry, estreante) distanciando-se lentamente enquanto explora o local, até deixar o parque e chegar à praia. É então que ela encontra uma atração deslocada cuja placa de identificação “Encontre você mesmo” captura sua atenção.
Uma vez lá dentro, para evitar spoilers, basta dizer que ela, de fato, encontra a si mesma, só que de um jeito inesperado e chocante. Com isso, a trama sofre um salto temporal para os dias atuais onde a menina, já crescida e interpretada por Lupita Nyong’o (de Pantera Negra), relutantemente, viaja com sua família para o mesmo local. Era para ser uma temporada de diversão, mas o passado resolve perseguí-la (literalmente).
Misturando uma abordagem realista que contrasta com os eventos fantásticos que permeiam a narrativa, Jordan Peele mostra-se um verdadeiro especialista em provocar desconforto em seu espectador: retomando a parceria com o compositor de Corra!, Michael Abels, o realizador constrói sequências onde a sinistra melodia que ouvimos jamais combina com o que vemos em tela. Se as imagens sugerem coesão e tranquilidade, a música impõe incerteza através do macabro. Por outro lado, se já estamos imersos no terror, a trilha investe no estranho com acordes suaves, agudos. Ora, o que deveria combinar num pesadelo?
Além disso, com o auxílio da fotografia de Mike Gioulakis (Corrente do Mal), ele posiciona a câmera sempre em ângulos mais baixos, despertando sempre a sensação de que algo está errado. O uso das cores, principalmente do vermelho, também merece elogios, já que conferem personalidade aos diferentes universos mostrados e contam com sua parcela de simbolismos, ao passo que o rico design de produção de Ruth De Jong (da série Twin Peaks) é eficiente ao tornar aconchegante a modesta morada dos Wilson e impregnar o suntuoso lar dos Tyler com a mesma cor chapada utilizada para compor os ambientes menos humanos da narrativa.
Entretanto, assim como fez em Corra!, Peele volta a usar o humor como camada adicional. Aliás, aqui ele mostra um evidente aperfeiçoamento, explorando a comédia em diversas vertentes, visto que o riso pode ser fruto de puro nervosismo, piadas escrachadas, escapismo ou até mesmo como crítica velada. Claro que diante de um vasto repertório, algumas tentativas funcionarão mais do que outras, e mesmo que Winston Duke (também de Pantera Negra) protagonize alguns desses momentos menos inspirados, Peele trata de (quase) sempre conectar suas gags a eventos importantes, ressignificando-os.
Por falar em ressignificar, por mais que o diretor/roteirista seja hábil em apresentar signos, o excesso de alegorias incomoda (involuntariamente) justamente graças à sua dificuldade em conectá-los, convertendo o terceiro ato numa bagunça quase caótica e que ainda inclui uma reviravolta que só evidencia a convolução do roteiro. Peele parece ter se animado com a ideia de atirar ideias e não se ver obrigado a explicá-las, deixando essa função para o público, que se não entender todas, ao menos terá material suficiente para conceber sua própria interpretação sobre o que viu.
E já que falei em interpretação, é impossível comentar sobre Nós sem elogiar a performance absolutamente extraordinária de Lupita Nyong’o. Espantosamente expressiva, a atriz mexicana encarna com naturalidade o papel da heroína Adelaide, demonstrando personalidade e liderando o elenco sem dificuldade. Exalando força, mas sem perder o ar de ternura, seu amor materno é inquestionável, o que torna-se fundamental para compreendermos a natureza de suas ações, cada vez mais violentas.
Mas é como Red que a vencedora do Oscar brilha de fato: adotando um tom rouco, quase afônico, é impossível não sentir arrepios cada vez que aquela figura de vermelho resolve abrir a boca. Os olhos arregalados e desprovidos de sobrancelhas também contribuem, claro, mas os modos imprevisíveis da personagem são igualmente eficazes na construção da persona sinistra. E ficarei profundamente frustrado caso Lupita Nyong’o não seja, ao menos, indicada aos principais prêmios da temporada.
Com relação ao elenco secundário, Winston Duke, citado anteriormente, é o responsável pelo elo com o espectador, o porto seguro de sanidade e âncora com a realidade. Carismático e eficiente no papel bonachão, Duke mostra versatilidade semelhante à sua colega Elizabeth Moss (da série The Handmaid’s Tale) que transita bem entre o papel de mulher rica que recorre ao álcool para ‘suportar’ sua ‘difícil’ realidade (White People Problems…), com o de sua versão maligna, abusando dos carões assim como as assustadoras gêmeas interpretadas por Calli e Noelle Sheldon.
Com fortes influências de O Iluminado e leves pitadas de Violência Gratuita, Nós acaba sendo, no final das contas, um comentário sobre o próprio povo estadunidense, como o título original já sugere (United States é abreviado como US, afinal). O preconceito velado, explícito e institucional, a hipocrisia, a incompetência do Estado e até o American Way of Life são colocados em perspectiva. E como bom terror que é, Nós entrega isso tudo em alegorias que servem, igualmente, ao seu primeiro objetivo: aterrorizar.
Isso tudo sem apelar para sustos fáceis, acordes abruptos, figuras sobrenaturais ou violência explícita. A própria realidade já é apavorante o suficiente e o pesadelo maior é saber que isso, infelizmente, está longe de mudar. Aliando discurso e entretenimento, Jordan Peele prova saber exatamente a função da Arte e seu poder através do Cinema.
E quis o destino que a maior reviravolta por ele concebida não estivesse presente em uma de suas obras, mas sim em sua própria carreira. Seja bem-vindo, Jordan Peele.
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