Nããão! Grito numa mistura de angústia e desolação. Como num filme de terror, onde subitamente aparece Lugosi com seu manto em sombras, um raio, seguido de um trovão estrondoso, me arrepia todo. Estou todo molhado. Com a vista turva. A água quente do chuveiro elétrico continua caindo como de costume. Pela janela a água é fria. Interrompo imediatamente este fluxo, hábito matutino. Abro com certa violência e ansiedade a porta do american box e começo a me enxugar, descuidado, apressadamente. A chuva lá fora é torrencial. Tento novamente.
Não consigo acreditar.
Como numa revelação kafkiana constato que ao olhar para baixo a minha visão é interrompida por uma montanha, minha conhecida, de dimensões sempre crescentes, que não me deixa contatar o meu companheiro do andar de baixo. Companheiro este, sempre presente e nem sempre camarada.
Um terrível choque.
Saio horrorizado do banheiro em névoa e me dirijo para o quarto de vestir. Deixo um rastro úmido entre os cômodos. Abro imediatamente uma porta de armário. Com a intervenção de um espelho solidário vejo que ele está lá, como sempre. Meio acanhado e escondido. Tento agora uma visão lateral. Uma grande dobra arredondada prejudica um reconhecimento positivo deste amigo de tantos anos e aventuras. Sinto o seu isolamento. Sinto o meu isolamento. Separados por uma massa de carne, bem estruturada, com solo duro e vegetação rala, rasteira, monótona. Atentando melhor, um pequeno acidente geográfico ao centro, no cume. Uma cratera misteriosa. Profunda até.
Agora sou um explorador do meu próprio corpo. Lembro-me de uma bandeira tremulando, não de triunfo. Comparo esta descoberta com o deserto arredondado e liso acima de meus olhos. Este panorama com que me deparo todas as manhãs ao barbear-me. Um pesar misturado a uma vontade incontida de gargalhar, para todos que ainda dormem, me invade. Apenas esboço um sorriso sarcástico. Penso: duas esferas imperfeitas separadas em um mesmo corpo. Uma maltratada pelo tempo e pela sua herança genética. Outra, resultado de descaso e de responsabilidade única de seu portador guloso e descuidado. Numa rápida viagem no tempo, como naquele túnel de Irwin Allen, mas sem as presenças de Doug e Tony, revejo em instantâneos a transformação degradante destas regiões. Uma, já foi um verdadeiro planalto com demarcações bem proporcionadas, orgulho adolescente. A outra, superior, coberta por rica vegetação abundante, que às vezes, pelo desleixo, encobria os meus olhos míopes. Ambas as regiões se harmonizavam com as demais partes compondo, senão uma obra impressionante, um retrato bem falado.
Sento ainda nu, como um personagem exótico de um folhetim mal escrito. Ou ainda, de uma página inteira de Frank Miller.
Recordo então as observações jocosas de amigos à mesa semanal do boteco de sempre. Entre um chopp e outro, menções nada honrosas ao desenvolvimento acelerado de minha terra média, alimentada continuamente e, com muito gosto, pelos mais variados petiscos repetidos à exaustão. E o desvario alucinado de anos e anos fartando-se dos mais inesquecíveis doces. Devidamente estudados e apreciados. Comer e comer. Duas das mais divertidas e prazerosas atividades do homem. Avisos não faltaram destes companheiros de histórias e risadas sobre a minha condição cada vez mais espaçosa. Considerava-me com isso travestido com as características e as falhas amadas de um herói de quadrinhos. Assim como o Garfield e as lasanhas. Ou mesmo Dudu e os hambúrgueres. Cartman e os incontáveis palavrões. Ou seja, uma figura agradável, cômica e generosa. Meu amigo Stan Laurel. Algo bem diferente do gordo arrogante, egocêntrico e chato das noites da Globo.
Como numa gestação afeiçoei-me, acostumei-me, adaptei-me ao corpo mutante. Isto é, resignei-me. Mas agora, com a transformação neste estado, assim como Samsa, senti repugnância. Nesta posição as coisas se complicavam, e muito, pois olhando no espelho, uma massa disforme e gigantesca se apresentava, como um terrível e ameaçador monstro de borracha japonês. Enfrentando Ultraman e a Patrulha Científica… Sorri novamente. Do terror à ficção B.
Levantei-me. E de frente ao espelho acusador fui fazendo um strip-tease reverso. Não tinha me atinado ao meu samba-canção, ridículo nas mãos, enorme e branco. Uma faixa larga e alva isolando as pernas do resto do corpo. Mais ridículo ao prestar atenção à ginástica inconsciente e diária para vesti-la. Camiseta pólo amarela e drasticamente adaptada com o passar do tempo, desgastada e pressionada, com a missão ingrata de cobrir uma montanha.
Para vestir o jeans desbotado, sento-me novamente. Para abotoá-lo, estou de pé saltitante. Começo a transpirar. Cinto, o item mais fácil, embora assustador, mais parecendo uma anaconda interminavelmente perfurada. Quanto as meias e aos sapatos, imaginem vocês. Sr. Incrível!
Decisão solene: dieta e exercícios. Sacrifício válido para resgatar a visão sequestrada de meu amigo isolado.
Um filme de terror então se instala na tela de minha mente. Sem comerciais e diferentes do espírito de uma sessão da tarde juvenil, imagens de vegetais insípidos e pálidos com caras tristonhas, carnes magras destemperadas, uma seleção colorida e alegre de saladas infindáveis de um cardápio pobre e enfadonho. As massas sedutoras e arredondadas nadando em seus molhos inesquecíveis, o porpetone de Napoli, aquele fantástico pastel de feira de domingo, coxinhas generosas e churros fálicos adocicados, aquele pão com mortadela do Mercadão, o bolinho de bacalhau do Léo, a pizza da família Donato… Desapareceram! Neste programa são passados como indesejáveis flashbacks, intencionalmente distorcidos, em preto e branco. E, se não bastasse, uma animação caprichada de um enorme “X” em vivo vermelho. O sabor da bureka do Bom Retiro, o zabaione da Mooca, doces e tortas da Oscar Freire, o mais frugal e popular milk-shake de Ovomaltine do Bob’s, agora um sonho distante, borrado e proibido. Minha cabeça gira, tonta de fome, abatida pela tortura que me aguarda. Pode não parecer tão ruim, mas a antecipação angustia.
Sou agora um hamster, enorme e balofo, ridículo, com calção, camiseta e tênis. Suando, correndo, sem destino, e com uma paisagem estática ao meu redor. Asfixiante, ao som de bate-estacas sincopada, em uma discussão sem fim com uma letra marciana recitada por um rapper gringo qualquer. Entendo agora a situação: o programa apresenta o mais inútil aparato de tortura moderno, elétrico, não poluente. Mas, diferentemente do que poderia imaginar, nesta corrida desesperada e sem sentido, não há, ao menos, um generoso pedaço de camembert ao meu alcance. O pesadelo continua ao focalizar diferentes aparelhos, desenhados especialmente para torturas específicas, visando determinadas partes do corpo. De todo o corpo. Emagrecê-lo a todo custo é a missão determinada, impossível. É a chamada tortura localizada, especializada, algumas com pós-graduação e doutorado. Após o suadouro, o acentuado sabor da fome, muita fome; fome crônica agora.
Ao final, um juízo: um equipamento severo, incorruptível, frio e delator. Com seus enormes dígitos vermelhos acusadores apresenta a conta de meus esforços sobre-humanos: 117.
Penso irritado: quanta bobagem!
Desligo a TV.
Vou dormir de olho no meu “amigo” do andar de baixo.
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2 Comments
Que visão poética da situação! Muito bom Uryens! Gosto de crônicas assim, reflexivas.
Aguardo os próximos textos.
Olá Erika ! Brigadão pelas suas gentis palavras… Estou aguardando a sua estréia !
uryens.