Quando o primeiro Deadpool estreou no início de 2016, trazia consigo um forte apelo consequente do fator surpresa. A incerteza acerca de um projeto encabeçado por um astro assombrado por escolhas ruins no mesmo gênero (comentarei mais adiante), aliado a um diretor estreante, um orçamento modesto e uma solene falta de prestígio por parte de seu estúdio, acabaram potencializando uma enorme surpresa quando a produção mostrou-se de fato, um sopro de frescor dentro de um subgênero tão exaustivamente explorado.
Isso, evidentemente, não impediu que Deadpool apresentasse seus legítimos predicados, colocando em prática uma fórmula improvável que combinava uma metralhadora implacável de piadas a um roteiro feito sob medida para seu grande astro brilhar (ou seria redimir-se?), resultando numa comédia super-heróica que não só soube subverter as tradicionais convenções desse nicho, como também foi inteligente ao empregar a quebra da quarta parede como um conceito catalisador da metalinguagem que transformou-se em sua marca registrada.
E se em 2016 escrevi que a grande sacada do filme era mesmo seu desbocado anti-herói, esse ano a coisa muda de figura, pois é Ryan Reynolds, seu intérprete, o maior nome por trás do sucesso de Deadpool 2. Literalmente, no caso. O fato é que, passados dois anos desde sua redenção, Reynolds já não encara o personagem como sua chance de mudar de status, mas sim de consolidar-se nesse patamar alcançado, o que explica uma mudança ainda mais brusca: se antes o ator ancorava-se na autoindulgência, agora sua postura passa a flertar (ainda timidamente) com a jactância. “Timidamente”, pois Reynolds ainda é inteligente o bastante para transformar fanfarronice em humor, e o faz brilhantemente. Pelo menos por enquanto.
Agora também responsável pelo roteiro ao lado da dupla Rhett Reese e Paul Wernick (também responsáveis pelo script do anterior) Reynolds é, claramente, o dono da bola, tendo total (e conquistada) liberdade para escrever suas próprias gags, sendo fiel ao seu delicioso estilo ácido ao tirar sarro de tudo e de todos (mesmo), mas amplificando seu alcance e aumentando a frequência de suas tiradas, o que causa certo cansaço lá pela metade do segundo ato, é verdade, mas basta uma outra piada bem feita para reconquistar o público. E acredite, ele consegue.
Pois, Reynolds sabe exatamente o que seu público-alvo quer e como entregar: ora, se é para zombar de um filme de super-herói, que tal Batman Vs. Superman e a polêmica em torno do nome Martha? Antenado nas redes sociais como ninguém, o canadense parece ter registrado cada burburinho, formulando uma alfinetada para cada. E tome referência a X-Men e a Vingadores (não pense que Josh Brolin se livrou de ser lembrado como Thanos). Uma verdadeira overdose de referências pop, mas o melhor de tudo é a imparcialidade com que o roteiro se compromete, afinal, nem mesmo os produtos da casa escapam, sobrando até para a equipe técnica por trás do filme (lembre-se que o diretor é o mesmo de John Wick).
Por falar no diretor, David Leitch volta a apresentar talento na condução dos combates corporais, sabendo, inclusive, brincar com características dos próprios personagens, unindo o estilo bruto e rápido de sua coreografia habitual com pitadas de humor envolvendo a “resistência” de seu protagonista ou particularidades dos coadjuvantes. Em contrapartida Leitch acaba severamente prejudicado pela aparente limitação orçamentária, escancarado pelos fraquíssimos efeitos visuais que ilustram os poderes dos vários mutantes que atravessam a história. Desde o ‘fogo artificial’ manipulado por Russell, passando pela precariedade do green screen, até problemas com frame rate, Deadpool 2 sente (e muito) a ausência de Tim Miller, diretor do primeiro filme e especialista no assunto. Antes um diferencial dessa autointitulada franquia de comédia, a ação passa a ser relegada a um papel secundário, servindo apenas como uma escada para o humor, e que é automaticamente motivo de piada, como não poderia deixar de ser (Reynolds perde o amigo, mas não a piada).
Já o roteiro acaba se perdendo ao imprimir um tom emocional que simplesmente não bate bem com a mistura do projeto, tropeçando no melodrama sempre que tenta ir pelo caminho mais dramático. Os roteiristas, logicamente, fazem piada com o próprio material, mas colocando o dedo na ferida errada, apontando pequenos absurdos como fraquezas, ao passo que os autênticos equívocos parecem escapar da vista dos escritores, que ao menos não utilizam (ou não conseguem utilizar) a comédia para mascarar eventuais defeitos, optando por, ao invés disso, brincar (novamente) com a estrutura narrativa, verbalizando recursos narrativos (como o foreshadowing) e alterando o universo diegético.
Nessa linha metalinguística, Ryan Reynolds talvez pese a mão ao tentar, desesperadamente, associar-se a Deadpool, fazendo uma confusão pouco saudável, como fica patente na cena em que o personagem, autografa uma caixa de cereal como “Ryan Reynolds” ao invés de “Wade Wilson” ou simplesmente “Deadpool”. Um “máximo esforço” (permita-me entrar no clima do filme) que já nasce tolo, uma vez que Reynolds e Deadpool já são sinônimos.
Ao menos, esse calculismo passa muito longe quando o filme demonstra interesse em levantar a bandeira da representatividade, acertando em cheio, por exemplo, ao brincar com a etnia de Dominó e, principalmente, ao dar uma bela lição ao fazer graça com o relacionamento amoroso de Negasonic Teenage Warhead (no original), assumindo a máxima do “rir com” e não “rir de”. Já ao mencionar as diferenças de Cable em relação aos quadrinhos, Deadpool volta fazer graça, como se quisesse pedir perdão em troca de risadas (“ele é um tampinha, muito diferente dos quadrinhos”, é dito em certo momento).
Josh Brolin, aliás não se esforça muito para transformar Cable em algo além de um trampolim para Deadpool, limitando sua performance a uma voz rouca, expressões fechadas e movimentos calculados, deixando seu visual (inegavelmente estiloso) fazer o resto. Por enquanto, a interação Cable/Deadpool soa previsível e mais trivial do que deveria, como um diamante bruto que certamente será lapidado numa futura (e provável) continuação.
Em última análise, o maior trunfo dessa produção é exatamente não abandonar suas origens, mantendo aquela aura anárquica que confrontava o politicamente correto e apontava suas armas para a própria indústria e seus filmes de super-heróis, num exercício de divulgação através da gozação, desdenhando do conceito de heroísmo enquanto fazia jus à sua pesada classificação indicativa. Pois Deadpool é essencialmente isso.
Encerrando a projeção com duas sequências pós-créditos que materializam o maior sonho da carreira de Ryan Reynolds, Deadpool 2 talvez revele muito mais sobre o ator canadense do que sobre o personagem em si, embaçando a fronteira que separa ambos, ao mesmo tempo em que mergulha o espectador numa espiral de escárnio que parece reproduzir exatamente o que o público mais jovem costuma compartilhar na internet (o que pode ser hilário, caótico ou ambos).
O que não podemos deixar de reconhecer é a inteligência de Ryan Reynolds.
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