À primeira vista, Kardec é uma produção requintada com uma direção de arte competente, fotografia que valoriza a luz de uma época sem eletricidade, uma pesquisa de figurino caprichada e uma excelente recriação digital da Paris do século XIX quando o roteiro assim o exige.
O problema do filme começa quando os atores abrem a boca ou mesmo se movimentam pelo cenário. Performances presas a diálogos mal escritos, entonações forçadas que soam como se estivessem em uma novela da Record e até mesmo as marcações (momentos em que o ator deve parar ou se movimentar para a câmera) podem ser percebidas, fazendo com que certas movimentações pareçam bem artificiais. O resultado é uma falta de paixão e de entrega aos personagens que o diretor falha em conseguir dos atores.
Um dos problemas que já notei em filmes espíritas (e religiosos em geral) é que existe uma tendência para que todos falem mais ou menos no mesmo tom, como se vivessem em uma sociedade civilizada que não existe e nunca existiu. Talvez seja o tipo de sociedade ideal que o diretor Wagner de Assis (Nosso Lar) imagine e por isso force os atores a falarem desse jeito. Há pouco ou nenhum espaço para conflitos internos mais realistas ou com outros personagens. Quero dizer, o roteiro até pede isso de alguma forma, mas o modo com o diretor leva os atores, o conflito é amenizado até parecer um problema trivial qualquer. Momentos em que a Amelie (Sandra Corveloni), esposa de Kardec, pede para as pessoas se acalmarem são momentos em que alguém mal está levantando a voz e qualquer conversa de bar entre amigos parece muito mais agressiva do que esses ”tensos” momentos de discussão no filme. Um bom diretor perceberia que deveria fazer uma de duas coisas: ou os atores interpretam uma discussão acalorada que mereça uma intervenção ou ele deixa a discussão morna e corta a intervenção. Mas sensibilidade para construção de cenas ou mesmo entender o significado delas parece não ser o forte de Assis.
Um outro momento é quando uma turba furiosa de 20 pessoas ou mais ameaça com xingamentos, tochas e pedras a casa de um espírita amigo de Kardec (Leonardo Medeiros) e basta uns poucos pedidos do personagem para a turba inteira disperse automaticamente. Não se vão aos poucos, não existem pessoas mais enfurecidas que outras, ninguém sequer joga uma pedra em Kardec. Ao comando do diretor do filme, todos simplesmente calam a boca e saem quietos. Mas o pior momento “criativo” do roteiro e do filme sejam as cenas em que Kardec é seguido ou perseguido por dois homens de preto que agem como se fossem vilões (rostos abaixados para parecerem sinistros) e depois de fazer o espectador pensar o tempo inteiro que são espiões da igreja ou assassinos contratados, eles apenas se revelam como figuras bondosas e aparentemente, fãs de Kardec. Ou o diretor tem um estranho senso de humor ou ele acha que o público é burro. Nos dias de hoje seria como um fã stalkeando uma celebridade pelas ruas com uma expressão maníaca no rosto, mas que no final das contas, ele é só um cara muito simpático que quer fazer uma selfie para postar no Instagram.
Chafurdando no Umbral dos clichês, onde Kardec e a esposa são o casal romântico perfeito e amoroso na meia idade, o filme só tem um momento que emociona um pouco, que é quando uma nova médium se apresenta, depois de outros o terem abandonado, e lhe dá esperança quando incorporada por um espírito. Ainda assim, como na maioria das cenas, o enquadramento é preguiçoso e teatral e não ajuda a construir a atmosfera sobrenatural e de alegria que a cena exige. O editor até pode ser bom, mas se o diretor não entrega os planos que deveria, não há o que se fazer. As tentativas de tecer comentários sociais sobre situação do Brasil atual, como a religião interferindo na educação pública e a intolerância religiosa, são positivas, mas bastante breves no filme. Se talvez fossem partes mais trabalhadas do roteiro, o filme poderia ser mais interessante aos olhos do público e ter mais relevância política nesses tempos medievais que vivemos.
A verdade é que eu poderia ficar aqui fazendo uma lista de diversas cenas que não funcionam no filme, mas quero acrescentar que o filme evita as partes polêmicas da doutrina espírita propagada por Kardec, o que seria algo bom em uma cinebiografia que se pretendesse dramática. Fatos que figuram tanto no Livro dos Espíritos (publicação engrandecida no filme) quanto em publicações do punho do próprio Kardec, onde ele e os tais espíritos superiores pregavam a superioridade moral e espiritual do homem branco diante do negro e da mulher, mostrando que pensavam como qualquer cidadão racista e machista da época em que viviam. E isso faz muito sentido, se percebermos que, mais de um século depois, Chico Xavier, considerado por muitos a reencarnação de Kardec, revelou no programa Pinga Fogo que os espíritos superiores eram favoráveis à Ditadura brasileira.
No final das contas, Kardec é mais um filme feito para os doutrinados do que para quem gosta de uma boa cinebiografia. Mais um caso onde os valores da produção são muito superiores aos talentos dos roteiristas e do diretor. Mas o filme deve encontrar seu público, que são os espíritas e talvez pessoas que gostem de novelas da Record.
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