Dizem que Guillermo del Toro disse para um dos atores ao entregar o roteiro de A Forma da Água:
“Espero que você ame o roteiro tanto quanto eu”
É possível um ator não querer embarcar nesta loucura deliciosa e amar juntamente?
Se você gosta de filmes fantasiosos, com roteiro diferente e que seja um conto de fadas politicamente incorreto vá correndo assistir A Forma da água. Se você gostou de “O Labirinto do Fauno” vai se surpreender com o grande retorno criativo de Del Toro. Eis um filme com uma direção criativa e precisa.
O filme tem colecionado prêmios por onde passa, sendo vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza 2017, no Globo de Ouro levou os prêmios de Melhor diretor (Guillermo del Toro) e Melhor Trilha Sonora (composta por Alexandre Desplat), por sinal a trilha dá os ares de “O Fabuloso Destino de Amélie Poulauin” (música amorosas, nostálgicas e que ajudam na condução da protagonista). Desplat já ganhou um Oscar em 2015 de Trilha Sonora Original por “O Grande Hotel Budapeste”, além de ser reconhecido e indicado pelas trilhas de “A Rainha”, “Philomena”,” Argo”, “O Jogo da imitação” “A garota dinamarquesa”, eis que é o compositor francês já deve estar acostumado com tantas indicações.
Para quem adora fazer maratona do Oscar, “A Forma da água” está entre os melhores filmes dos 9 indicados deste ano. Acredito que seu maior concorrente com 6 indicações é “Três anúncios para um crime” (de Martin Mcdonagh).
Não é por acaso que o filme de Del Toro líder do páreo com 13 indicações no Oscar 2018 (o que às vezes na premiação não dá muita sorte), mas acredito terem sido indicações merecidíssimas (Melhor Filme do ano, Melhor diretor, Melhor atriz, Melhor atriz coadjuvante, Melhor ator coadjuvante, Roteiro Original, Design de Produção, Montagem, Fotografia, Edição de som, Trilha Sonora Original, Figurino e Direção de arte.
Esteja preparado e aberto para entrar na história de Elisa que não é uma princesa de conto de fadas. Ou você se permiti ou este filme pode ser considerado por você ridículo e meio sessão da tarde, pois o filme é delicado e você pode achar delicado demais.
Elisa Esposito (perfeita atuação de Sally Hankins) e Zelda (Octavia Spencer) trabalham como faxineiras numa base secreta do governo dos Estados Unidos onde há um laboratório comandado pelo Dr. Holfsteler (Michael Stuhlbarg). Neste laboratório secreto de segurança máxima é levada uma criatura monstruosa e humanoide (um homem meio anfíbio interpretado por Doug Jones) vindo da América do Sul e enclausurado neste cativeiro. Os militares acreditam que o “monstro” possa ser uma resposta para combater os comunistas russos e que ele possua poderes especiais.
Neste laboratório ambientado em meados de 1963, durante a Guerra Fria, está o ardiloso agente do governo Strickland (Michael Shannon), que é atacado pelo monstro e perde dois dedos. Ele pretende se vingar e submeter a criatura a uma vivissecção (operação feita no animal vivo para seu estudo e experimentação).
Elisa uma faxineira muda vê algo a mais neste monstro, se afeiçoando cada vez mais a cada contato e por fim se apaixona pelo o mesmo. Aqui nasce o amor peculiar da solitária Elisa por um monstro. Nunca foi tão suspirante ver ovos sendo dados de presente.
A vida de Elisa fica na relação (quase pai e filha) que ela tem com seu vizinho Giles (Richard Jenkins), um homem que está tentando arduamente vencer em sua profissão, sendo um pintor fracassado e solitário rodeado de gatos. O que une Elisa e Giles é a paixão de ambos por musicais e por serem excluídos e sonhadores.
Para salvar o monstro, Elisa vê no vizinho um aliado e ambos criarão um plano para tira-lo do cativeiro.
O roteiro do filme foi escrito por Del Toro e Vanessa Taylor (“Divergente” e “Game of Thrones”. Em “The Shape” há uma sucessão de homenagens em seu roteiro: ao monstro preferido do diretor (do clássico “O monstro da Lagoa Negra” de 1954 personificado por Doug Jones), a antiga Hollywood retratada nos números musicais, o expressionismo alemão, o sapateado, as grandes divas, ao cinema e os filmes clássicos. Mas a grande homenagem é a todos que se sentem sozinhos e excluídos.
Del Toro escolheu um elenco afiadíssimo. Sally Hawkins (“Simplesmente Feliz”, Blue Jasmine”) é sem dúvida uma das melhores escolhas do diretor que criou a personagem exatamente para a atriz (foi a primeira e única opção, para nosso deleite). Sally como Elisa é hipnótica, crível, uma interpretação tão sutil e apaixonante. É merecido todos prêmios e indicações como atriz, pois ela nos cativa como a faxineira que não necessita palavras para nos dizer o que sente e através das expressões faciais e a linguagem de sinais nos traz uma personagem fascinante, além de que a atriz canta e dança nesta obra.
Conquistando com seu excelente desempenho está Richard Jenkins, que nos dá vontade de tê-lo como amigo e vizinho. Um ótimo ator de texto e que nos apresenta cenas hilárias e bonitas. Outro personagem cativante e com tiradas certeiras é interpretada por Octavia Spencer. O personagem da faxineira Zelda foi escrito especialmente para ela e aqui nos traz uma mistura de suas personagens nos filmes “Histórias Cruzadas e “Estrelas além do tempo”. Tanto Octavia como Richards são indicados por seus papéis coadjuvantes no Oscar 2018, os dois apresentam personagens que criamos rápida empatia, mas dificilmente levarão a estatueta.
A atuação de Michael Shannon me agrada (alguns críticos acham demasiado over e caricato seu vilão), mas acho que ele leva o personagem do agente para um limite interessante e que condiz com a proposta do filme. Confesso que ele me causou muitas tensões durante o filme e apresenta uma interpretação mais monstruosa do que o próprio monstro. Tudo que você pode imaginar de ruim no ser humano o personagem de Shannon tem. É ambicioso, sadomasoquista, sociopata, ardiloso e mostra a melhor faceta de quanto um humano pode trazer um monstro dentro de si.
Mas a aposta mais certeira é a química entre Elisa e o monstro, são estes momentos que ficam guardados em algum lugar bom que temos. Preste atenção na cena da água no banheiro, a cena do musical e a sensibilidade vista em seus primeiros encontros. A curiosidade que me chamou atenção é que o ator que interpreta o monstro (desconhecia a trajetória deste) demorava 3hs para se caracterizar, mas esta caracterização até que não era tão demorada perto de outras aparições que ele fez de “personagens sem rosto”. Doug Jones é conhecido por papéis em filmes de ficção científica, fantasia e horror (“Quija”, “O Quarteto Fantástico” e já esteve em outras obras de Del toro (o Homem Pálido em “O Labirinto do Fauno”,” Abe Sapien de “Helboy” e em “A Colina Escarlate”. Temos aqui neste filme um monstro sensível e ao mesmo tempo com instinto animal pela sobrevivência, mas que em contato com os que lhe acolhem só traz o bem. Ele tira o melhor das pessoas e melhora Elisa, o vizinho e até ele mesmo.
Temos uma verdadeira história de amor e conto de fadas improvável. O amor improvável entre dois “excluídos”: um monstro e uma mulher muda. O encontro de um monstro com um vizinho amável que é deixado de lado e reprimido por ser homossexual. É o encontro dos não aceitos.
“A Forma da água” te jogara num universo mágico, onde tudo é tão bonito que dá vontade de conhecer as locações do set, principalmente a casa de Elisa e o velho cinema que fica abaixo. A caprichada direção de arte, a produção de design (Paul Austerberry) e a direção de fotografia (Dan Laustsen nos conquistando com seus tons verdes, vermelho e o ar melancólico) são aqui memoráveis. Del Toro consegue dirigir com maestria e nos faz repensar o quanto podemos ser deformados por dentro.
“A forma da água estreia dia 1 de fevereiro nos cinemas e torço que no dia 4 de março leve pelo menos a estatueta de Melhor direção. Seria lindo Sally Hawkins como Melhor atriz, mas já fico feliz pela sensação de fluidez e paixão que ela despertou em mim. Elisa ensina como conviver com as diferenças.
Duvido que você se decepcione. Del Toro mais acertou do que errou.
Termino com uma frase do filme “Quando ele olha pra mim, o modo como ele me olha. Ele não sabe o que falta em mim, ou o quanto sou incompleta. Ele vê o que eu sou, como sou”
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