Neste quinto dia de Festival, foram apenas dois filmes. Em virtude da duração de A Casa que Jack Construiu e obstáculos logísticos, só consegui encaixar mais um filme: Operação Overlord.
Acabou sendo um dia marcado pelo gore. Seguem as críticas.
A Casa que Jack Construiu (The House that Jack Built) | 5/5 Estrelas
O cineasta dinamarquês Lars von Trier é um provocador nato, responsável por obras controversas quase sempre marcadas pela violência gráfica. Entretanto, por mais polêmico que seja, é difícil questionar sua competência como realizador. Mais, como artista, pois o valor artístico de seus filmes é indiscutível, concordando ou não com suas escolhas estéticas e narrativas. A maior reação que ele obteve, porém, não foi com uma de suas criações, e, sim, com sua declaração em 2011 durante a coletiva promocional de seu Melancolia no Festival de Cannes. Ao ‘brincar’ com judeus, dizer simpatizar com Hitler e ainda se declarar nazista, o diretor conseguiu ser declarado como persona non grata pela organização, tendo sido banido.
Porém, mesmo pedindo desculpas logo em seguida ao alegar “não estar sóbrio”, ele só voltou ao Festival esse ano, 7 edições depois e com mais uma obra controversa, mas desta vez com um forte cunho autocrítico. A história gira em torno de Jack (Matt Dillon) um serial killer que, numa conversa com o misterioso Verge, conta sobre alguns de seus assassinatos marcantes.
Investindo pesado na licença poética, o roteiro (de autoria do próprio Lars von Trier) nos conta pouco sobre Jack e tudo o que sabemos é dito por ele mesmo ou sugerido por Verge. Assim, descobrimos que ele é um engenheiro, mas nunca o vemos trabalhar como tal. Von Trier não tem muito interesse em fazer um estudo de personagem. Jack é apenas parte da equação.
Dividindo a estrutura em cinco partes (ou incidentes), a narrativa utiliza várias alegorias que aos poucos vão dizendo muito mais sobre o próprio cineasta do que sobre Jack. Sim, é possível ter diversas interpretações sobre o script, mas além do fato de Trier ser um mestre na manipulação dos signos cinematográficos, quem conhece o episódio narrado no início desse texto dificilmente vai ignorar as claras referências.
O diretor comenta vastamente sobre a utilização da violência como expressão legítima da Arte, como se justificasse sua abordagem em obras anteriores. “A Arte não deve se preocupar com o bem-estar das pessoas” diz Jack em certo momento. E na cabeça de Von Trier, essa afirmação faz total sentido, ainda mais considerando seus meios de produzir reações em seus espectadores. Há também divagações sobre os mais diversos assuntos, com direito a uma passagem que critica pesadamente o feminismo, num descarado discurso de que “o homem é sempre o culpado, mesmo quando não faz nada”, isso logo depois de mostrar Jack cortando o seio de uma de suas vítimas para transformar em carteira, num típico momento “vontrierístico”
E já que mencionei essa parte, a tão discutida violência gráfica de A Casa que Jack Construiu, é, de fato, chocante. Nem crianças escapam da crueldade do serial killer que protagoniza um momento macabro que, confesso, demorará a sair da minha cabeça e que envolve Jack aplicando técnicas de taxidermia para fazer o cadáver de um menino sorrir. Mas essas passagens são uma mera cortina de fumaça, pois o roteiro é muito mais do que apenas violência.
O brilhantismo do cineasta pode ser facilmente detectado, por exemplo, na construção da trama. Note como seu humor mórbido é utilizado para estabelecer fatos simples, como a natureza de Jack e a disposição de determinadas informações, que são apresentadas através de contradições cínicas ou rimas temáticas, como ao fazer Jack repudiar a caça apenas para colocá-lo caçando três de suas vítimas.
Matt Dillon, vale ressaltar, oferece uma de suas melhores performances, surgindo apropriadamente inexpressivo e investindo numa composição focal que evita maneirismos e o convencional tom ameno. Dillon transita entre explosões de fúria e momentos sutis, sendo igualmente bem sucedido ao retratar a mania de limpeza de Jack, que rende alguns dos momentos mais divertidos da produção, graças à repetição da montagem.
Apresentando seus argumentos por meio de uma infinidade de analogias, o roteiro de Lars von Trier é quase uma carta aberta de desculpas. Uma reflexão autocrítica que justifica sua imagem pública e sua visão como artista. O mais impressionante é que Trier consegue lograr êxito nesse ponto ao mesmo tempo que concebe uma história envolvente, cheia de simbolismos e com um final matador (perdoe o trocadilho).
A Casa que Jack Construiu é uma obra de arte que provavelmente demandará uma segunda visita para que todos os elementos sejam devidamente assimilados. Não é uma jornada fácil e Lars von Trier sabe muito bem como abalar nosso bem-estar como o legítimo artista defendido por seu protagonista.
Operação Overlord | 3/5 Estrelas
Pegando emprestado o codinome da operação que desencadeou o Dia-D na Segunda Guerra Mundial, Operação Overlord mescla gêneros ao retratar os horrores da guerra numa trama que mistura realismo e fantasia. Tendo início com uma impressionante tomada que mostra uma tropa estadunidense tendo de abandonar um avião bombardeado, a trama logo mergulha de cabeça nas convenções dos filmes de Guerra.
A começar pelos personagens, Boyce, Ford, Chase e Tibbet são meros arquétipos, funcionando apenas como instrumentos à serviço do roteiro: Boyce (Jovan Adepo, de Um Limite Entre Nós) é o soldado corajoso e certinho, Ford (Wyatt Russell, de Anjos da Lei 2) faz o cabo linha dura, o líder que não hesita em usar a violência, Chase (Ian De Caerstecker (da série Agentes da S.H.I.E.L.D.) é o inocente e Tibbet é o alívio cômico.
Sem muitos sobressaltos, o roteiro de Billy Ray (Capitão Phillips) e Mark L. Smith (O Regresso) também procura se cercar de clichês para construir a trama, utilizando elementos consagrados por obras anteriores, como o vilarejo francês que sofre na mão de oficiais da SS e o obrigatório acolhimento dos soldados norte-americanos por uma família nativa. O trabalho de Ray e Smith é tão meticuloso que não falta sequer o militar nazista que chantageia a moça da família.
Assim, ao reciclar estereótipos e convenções, Operação Overlord ganha ares de comida requentada, oferecendo ao público uma experiência longe da originalidade. Isso não chega a ser um problema fatal graças à direção do estreante Julius Avery, que ao menos tenta entregar um produto bem acabado. E consegue, com destaque para a tomada que abre a projeção e o excelente plano-sequência que ocorre perto do epílogo.
Além disso, Operação Overlord compensa a fraqueza do script com elaboradas sequências de ação, como o já citado plano-sequência, que parece ter tido influência de seu produtor J.J. Abrams (quem assistiu a Super 8 notará as semelhanças). Por outro lado, mesmo acertando na ação, o forte da produção é a sua capacidade de gerar tensão, construindo uma atmosfera pesada e focada em manter o mistério.
O problema é que o tal mistério deixou de ser novidade já nos trailers de divulgação do filme, não sobrando muita coisa para ser apreciada, além de alguns bons sustos uma ou outra perseguição (mais uma vez carregada de tensão). Outro problema da produção é jamais conferir peso às suas ameaças: os oficiais alemães soam como stormtroopers, sendo abatidos com facilidade e o vilão principal, interpretado pelo astro dinamarquês Pilou Asbaek (Ghost in the Shell – A Vigilante do Amanhã), até possui um visual caprichado pela ótima maquiagem e pelo sorriso diabólico de Asbaek, mas limita-se a uma subtrama vingativa e faz o roteiro ganhar ares episódicos (note como tudo é corrido e resolvido de forma simples).
Já a reconstrução de época é irrepreensível, com a direção de arte fazendo um bom trabalho com a ambientação, que se esbalda com os carros da época e a casa onde acontece boa parte do segundo ato. A trilha sonora não foge muito ao padrão, com Jed Kurzel se redimindo de seu barulhento e irregular trabalho no péssimo Assassin’s Creed.
Adicionando elementos fantásticos a um típico filme de guerra, a produção ganha ares frescos, fazendo do horror da guerra a curiosa combinação de realismo e fantasia. E a abundante violência gráfica, de fato, justifica a classificação indicativa, trazendo um verdadeiro banho de sangue, com membros amputados, cabeças esmagadas e toda a sorte de carnificina. Um prato cheio para os entusiastas do gore.
Por isso, Operação Overlord jamais deixa de soar como uma produção escapista, divertindo pontualmente com a mistura de gêneros, mas sem cativar aqueles que esperam mais do que um produto reciclado. Satisfatório, mas longe de ser marcante.
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