Em virtude da cabine de Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindewald, só vi dois filmes do Festival: A Excêntrica Família de Gaspard (dramédia francesa que fez sucesso no Festival Varilux) e Se a Rua Beale Falasse, novo filme de Barry Jenkins (Moonlight) e que está no radar das grandes premiações.
A Excêntrica Família de Gaspard (Gaspard va au Marriage) | 3/5 Estrelas
Filmes sobre núcleos familiares existem aos montes, em todas as culturas. Mas é curioso notar que, com o tempo, o Cinema Francês acabou se especializando nesse tipo de narrativa, expandindo-o para um legítimo subgênero.
No caso de A Excêntrica Família de Gaspard (ou Gaspard va au Marriage, no original), a trama se apresenta como uma espécie de mistura improvável entre Compramos um Zoológico, Os Excêntricos Tenenbaums e, em menor grau, Entrando Numa Fria Maior Ainda. A história é contada a partir do olhar de Gaspard (Félix Moati, competente), um sujeito de 25 anos que embarca numa viagem de trem para comparecer ao segundo casamento de seu, esperando encontrar sua família depois de longos anos de afastamento. Durante o trajeto, Gaspard conhece a intensa Laura (Laetitia Dosch, excelente), a quem convida para acompanhá-lo na cerimônia.
Quando Gaspard e Laura chegam ao local, o espectador descobre que a família do rapaz passa longe do convencional, pois vive da administração de um zoológico. Não só isso, os membros, além de misturarem a vida particular com o cotidiano do zoo, são bem peculiares, como o caso da irmã de Gaspard, que acredita ser uma ursa.
O diretor Antony Cordier (do fraco Para Poucos) cria uma atmosfera deliciosa que propicia uma interação saudável entre os personagens sem soar artificial. Além disso para reforçar a intimidade entre os familiares (em especial Gaspard e sua irmã), o roteiro, também de autoria de Cordier, investe pesadamente em sequências de nu, com os personagens tomando banho juntos ou caminhando sem toalha pela casa. Esses momentos, vale destacar, não soam gratuitos e comprovam a competência de Cordier, que dilui o impacto dos nus frontais ao jamais deixar de tratá-los como algo corriqueiro.
Esse clima perdura todo o filme, mostrando a afinidade (e a coragem) do elenco. Gaspard, por exemplo, é interpretado por Félix Moati com um ar de despretensão que nos ajuda a entender sua relação com os familiares, que insistem em vê-lo como a criança dos tempos em que ainda morava juntos. Mesmo descontente com esse tratamento, Gaspard está sempre com um sorriso estampado no rosto e em nenhum momento, sequer, levanta a voz para alguém, méritos de Moati, que entende que o amor de Gaspard por sua família é maior do que seu orgulho.
Do elenco de apoio, Laura (Laetitia Dosch) encarna com facilidade o papel de espírito livre, aquele tipo de jovem que não tem papas na língua e quando decide realizar algo, dedica-se de corpo e alma. E cabe um elogio especial à química entre Dosch e Moati, que convertem o casal no elemento mais simpático do filme.
Já Coline é vivida por uma Christa Théret (do ótimo Vidas Duplas) que embarca sem reservas em sua jornada insana: vestindo uma pele de urso negro 24 horas por dia, Coline parece ter encarado de forma pouco sã a administração do zoológico. Com direito a hibernações (literalmente) e grunhidos quando ameaçada, ela realmente acredita ser uma ursa, mas graças à inteligência do script, jamais é retratada como maluca. Mais que isso, Coline é uma jovem rebelde e cujos traumas da infância são explorados com delicadeza. E o bom trabalho de Théret pode ser constatado no olhar sempre juvenil que acompanha a moça em suas atitudes.
Incorporando temas exaustivamente explorados por obras semelhantes, A Excêntrica Família de Gaspard parece amarrado demais às convenções do gênero, apresentando personagens únicos e multifacetados num universo já desgastado por anos de exploração cinematográfica. Porém, no final das contas, o saldo permanece positivo, em virtude das boas performances de seu elenco, que confere passa honestidade nas interações vistas na tela.
Graças às peculiaridades de seus personagens, A Excêntrica Família de Gaspard acaba soando muito mais interessante do que a história que se dispõe a contar, rendo boas gargalhadas e um bem-vindo escapismo aos espectadores menos exigentes.
Se a Rua Beale Falasse (If Beale Street Could Talk) | 4/5 Estrelas
Quando se revelou ao mundo através do impactante Moonlight: Sob a Luz do Luar (vencedor do Oscar de Melhor Filme no ano passado), Barry Jenkins provou ser um cineasta crítico, que alfineta o preconceito institucionalizado, mas que também sabe evocar o lúdico, trabalhando as cores como poucos na atualidade. Se Moonlight tratava com realismo a jornada de desamor de seu protagonista, Se a Rua Beale Falasse, novo projeto de Jenkins, toma um rumo oposto, abordando a história de um amor inabalável, mas com fortes tintas de denúncia.
Com um elenco afiado, Jenkins divide a narrativa em duas linhas temporais: uma que retrata o cotidiano do casal separado e outra que volta no tempo através de flashbacks que fazem uma retrospectiva desse relacionamento. Repetindo a equipe técnica de seu filme anterior, Jenkins volta a exibir um olhar apurado para a parte visual da narrativa: investindo pesado na relação das cores com o ambiente, quase todas as cenas possuem elementos que conversam entre si, desde o figurino verde de um personagem que é ecoado por cortinas do mesmo tom até os quadros corais que são espelhados pela decoração de um aposento. Esse valor estético engrandece a atmosfera do filme e contribui para estabelecer o tom lúdico tão quisto por Jenkins e sua equipe desde Moonlight.
Alternando o romance entre Tish (KiKi Layne) e Fonny (Stephan James) com fotos cruas dos anos 60 (época em que o filme se passa) que ilustram a repressão policial a negros, o roteiro, adaptado por Jenkins a partir do livro de James Baldwin, assume desde o início uma postura crítica ao preconceito, aqui representado pela injusta prisão de Fonny, justificada pela represália de um policial racista e mal intencionado (Ed Skrein, o Francis de Deadpool).
Esse tom pesado é conduzido por Jenkins com a segurança de alguém que sabe o que está fazendo. Entretanto, ao povoar a narrativa com um elenco composto majoritariamente por negros, o cineasta assume um problema delicado, a medida que percebemos que quase todos os personagens caucasianos são encarados como figuras malignas, caricatas, ou ambas, como o oficial supracitado, encarnado por um Ed Skrein extremamente caricato.
Melhor sorte tem o elenco principal, que vê em KiKi Layne e Stephan James seu maior destaque. Se este último consegue transmitir toda a bondade de seu Fonny apenas através de um olhar gentil e sincero, Layne concebe Tish como uma mulher frágil, mas não o bastante para perder uma discussão acalorada, por exemplo. Essa discussão, aliás, revela-se um dos pontos altos da narrativa, com uma sucessão de frases secas e disparadas com rispidez e quase que imediatamente.
Nesse momento específico, Se a Rua Beale Falasse faz uma pausa nas críticas ao racismo para jogar luz na questão do fanatismo religioso, aqui representado pela figura da mãe do rapaz preso, interpretada por Aunjanue Ellis como uma mulher tão detestável quanto radical. Ela não hesita, por exemplo, em amaldiçoar a filha do casal principal (que ainda nem nasceu), apelando para frases que destoam dos reais significados bíblicos, exalando um ódio quase insano (e a agressão que acaba, infelizmente, motivando, serve também para humanizar os integrantes de ambas as famílias).
E por falar em humanidade, Regina King (série The Leftovers), como a mãe de Tish, tem a oportunidade de mais uma vez mostrar todo o seu talento, merecendo aplausos pela sequência onde sua personagem confronta a mulher que denunciou seu filho. A angústia de estar diante de uma situação fora do seu controle e o desespero por não ser capaz de revertê-la, tornam-se palpáveis graças à brilhante performance de King, desde já, merecedora do reconhecimento da temporada de premiações.
Beneficiando-se de mais um ótimo trabalho do compositor Nicholas Brittel (também de Moonlight), Se a Rua Beale Falasse evita o tradicional clichê de usar raps ou obras de hip-hop para embalar a narrativa, optando por uma trilha mais melódica e que também é capaz de acompanhar os momentos mais intensos, recuperando-se de um início ostensivo.
Enquanto isso, o diretor de fotografia James Laxton, em sintonia com o universo cromático estabelecido por Barry Jenkins, aproveita para criar planos esteticamente belíssimos, não só pelos enquadramentos sofisticados, mas também pela excepcional iluminação utilizada em cena (note o tom azulado que domina a sequência do restaurante).
Voltando a investir em frases fortes (“esse país não gosta de preto”), Barry Jenkins faz o retrato fiel de uma época conturbada dos EUA, traçando um paralelo com a atualidade que evidencia a falta de evolução de uma sociedade onde o preconceito racial já está enraizado. Não chega a ser envolvente ou marcante como Moonlight, mas é relevante o bastante para mostrar que não será através de discursos de ódio que as coisas mudarão e seu diretor faz questão de frisar que o amor pode e deve prevalecer.
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