Quem ficou encantado com O Fabuloso Destino de Amélie Poulain encontrará muitos motivos para gostar de Uma Viagem Extraordinária, novo longa metragem de Jean-Pierre Jeunet que tem uma abordagem semelhante ao narrar uma história do ponto de vista de um personagem atento aos mínimos detalhes, cheio de fantasia e soluções inusitadas para os mais diversos desafios.
Dessa vez, acompanhamos a história do garoto T.S. Spivet (vivido com intensidade pelo talentoso Kyle Catlett). Limitado pelos recursos do isolado rancho onde vive com a família, T.S. emprega sua extraordinária inteligência em cálculos, desenhos e teorias incompreensíveis para sua família: seu pai (Callum Keith Rennie), como ele diz, nasceu cem anos atrasado e continua um velho caubói de velhos hábitos; sua mãe (Helena Bonham Carter) é uma bióloga mergulhada em uma pesquisa aparentemente sem futuro; sua irmã (Niamh Wilson) é uma adolescente frustrada com a vida no campo e que sonha vencer um concurso de beleza; e seu irmão gêmeo Layton (Jakob Davies) é o espelho do pai, mas é com quem mais interage, mesmo tão diferentes um do outro. A partir de uma tragédia familiar, T.S. decide buscar um prêmio por um projeto que desenvolveu sobre uma máquina de movimento perpétuo, dado a ele pelo Smithsonian sem saber que se tratava de uma criança. Escondido, parte sozinho em uma aventura para cruzar os EUA.
Assinado pelo diretor e por Guillaume Laurant (também roteirista de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain), o roteiro é adaptado do livro homônimo de Reif Larsen. Com o formato de road movie, a viagem do garoto é o fio condutor do roteiro. E como o ponto de vista de toda essa história é a partir de uma criança que enfrenta um trauma realmente forte, os escritores acertam em cheio ao colocar figuras opressoras como grandes antagonistas do garoto, mesmo que o tom do filme surja com uma certa leveza, como se a tragédia praticamente não tivesse tanto peso sobre o protagonista. A começar pelo pai sempre ameaçador (embora saibamos desde sempre que não o é), passando pelo professor rigoroso, um policial que o persegue, uma multidão sorrisos falsos e, finalmente, as câmeras de um programa em rede nacional, tudo isso retratado com autoritarismo sobre um garoto que apenas gostaria de se manifestar sobre a tragédia, que nos leva a um dos momentos mais tocantes do filme.
O filme tem uma fantástica fotografia de Thomas Hardmeier, que explora as belas paisagens dos EUA em contraponto ao ambientes internos da casa de T.S., sempre muito claustrofóbica e com a presença constante dos pais em todos os cômodos, seja nos animais empalados da sala de estar que rementem ao pai ou ao escritório cheio de insetos da mãe. Isso é tão marcante no protagonista que presenciamos um plano subjetivo onde ele traça uma estratégia para atender ao telefone e descreve os desafios que terá de passar para chegar até o andar de cima. O design de produção de Aline Bonetto resgata o aspecto surreal que conseguira nos cenários de Amélie Poulain e assim emprega o verde e o vermelho para acentuar o momentos onde a imaginação de T.S. assume o tom de fábula de toda a narrativa.
E sim, apesar de planos de outros pontos de vista estarem inseridos aqui e ali na ótima montagem do filme, é bem possível aceitar que toda a viagem seja fruto do trauma do garoto. A julgar pelo plano em um quarto momentos antes da partida de T.S., podemos aceitar que o mundo dos Spivet parou naquele rancho e a tese de T.S. sobre a máquina nada mais era do que uma observação do seu próprio entorno, sua infância interrompida, algo que não podemos imaginar quando somos crianças. Jeunet acerta ao investir em muitos planos subjetivos nos detalhes que prendem a atenção do garoto, posicionando a câmera em ângulos que acentuam o ponto de vista de um pequeno gênio, onde jamais olharíamos normalmente.
Com um desfecho que dá ao espectador a boa sensação da renovação da vida, Jeunet reforça o que significa o movimento perpétuo, já que, assim como o jovem protagonista, estamos muito mais ao acaso desse movimento do que imaginamos. O filme é, portanto, um belo espetáculo visual com uma boa história. O que há de extraordinário, porém, é o jovem Kyle, com uma interpretação segura em todos os momentos, seja ao fazer um discurso adulto com um enorme peso dramático, seja nos momentos cômicos onde explora muito bem a irreverência do seu personagem.
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