Alan Turing salvou milhares de pessoas. Seus feitos anteciparam o fim da Segunda Guerra mundial com sua matemática aplicada à ciência da computação e, se nada disso for relevante tantas décadas depois, ele foi um dos pioneiros em uma ciência permitiu que você lesse esse texto a partir de um dispositivo microprocessado.
Se você não sabia de nada disso, há um motivo: ele era homossexual. A Inglaterra, onde homossexualidade era crime no século passado, condenou-o por isso, sem contar a ridicularização que sofreu quando assumiu sua sexualidade. Condenado a terapias que teoricamente reverteriam seu comportamento julgado impróprio, Turing teve sua vida virada ao avesso até cometer suicídio anos depois dos acontecimentos narrados em O Jogo da Imitação.
Sua sexualidade teve peso maior do que seus feitos e esse filme de Morten Tyldum consegue narrar a história de Turing durante a Segunda Guerra de uma maneira muito especial, pois investe na construção do grande matemático em vez de bater somente nos absurdos causados pelo governo britânico, afinal, a própria história já julgou esse evento fazendo com que Gordon Brown em 2013 fizesse um pedido de desculpas formal em nome do governo pelas atrocidades cometidas.
Graham Moore assina o roteiro adaptado a partir do livro The Enigma de Andrew Hodges. Tem Benedict Cumberbatch e Keira Knightley com excelentes interpretações nos papéis principais, assim como o elenco secundário, com destaque para Matthew Goode como o matémático Hugh Alexander, Charles Dance que funciona como um antagonista no papel de um oficial britânico e Mark Strong como um sujeito enigmático da inteligência secreta.
Cumberbatch entrega um trabalho incrível, minucioso, com muitos detalhes na sua postura e expressão facial que protegem um personagem tão genial quanto frágil devido ao segredo que é obrigado a esconder. Knightley tem uma ação equivalente ao empregar uma Joan Clarke segura de si, tão genial quanto Turing mas que é limitada por viver em uma sociedade também machista, além de homofóbica.
E aqui reside um grande ponto positivo do roteiro de Moore. Em vez de rebater a homofobia, o roteirista usa sua personagem para evidenciar a limitação de gênero imposta às mulheres, mostrando que aquela sociedade (e tantas outras) não abria espaço para nada além do mundo masculino. Isso vai além. Ainda que seja absurdo criar limites para as mulheres, elas tinham o espaço onde poderiam ser socialmente aceitas – o que nas entrelinhas intensifica o drama para um homossexual tratado como criminoso. Moore tem ainda o mérito de incluir um plano de Churchill, onde o líder discursa após a vitória dos Aliados e exalta que a liberdade prevaleceu e venceu a guerra. Com isso, acentua a falta de liberdade dos personagens principais e, com acidez, critica as ações do governo, uma vez que essa liberdade foi conquistada graças ao trabalho de pessoas que sofreriam perseguição.
O que incomoda no roteiro é que Moore investe em uma narrativa quebrada em três linhas temporais diferentes recheadas de diálogos expositivos que não se justificam em termos narrativos e deixa duas das três linhas funcionando somente para construção da homossexualidade de Turing desde o surgimento ainda na infância até as consequências na vida adulta. Ainda assim, a montagem de William Goldenberg tem bons momentos de raccord (gosto de um de movimento quando uma bituca de cigarro é apagada e salta para um bombardeio e também uma carta reveladora para um interrogatório), mas esses constantes saltos no tempo exigem que o espectador seja informado com textos na tela sobre onde e em que ano a sequência seguinte vai se passar.
Entretanto, a cinematografia de Oscar Faura (que em uma rápida pesquisa me levou a ver que é responsável pelo genial O Orfanato) é certeira ao empregar imagens mais quentes na infância de Turing em contraste com a frieza da vida dele no pós-guerra (acompanhada de uma trilha pra lá de melancólica). Já na linha narrativa principal que mostra o desenvolvimento da obra do protagonista, Faura acentua o perigo constante que cerca Turing com o uso do vermelho em muitos momentos, em especial na enorme máquina precursora dos computadores atuais cheia de cabos vermelhos conectados. Além que cumprir essa função, o vermelho ainda está presente no figurino inicial de Knightley a aproxima da obsessão do protagonista – sugiro que note o momento em que há uma mudança no figurino da atriz.
Com muito mais acertos que se sobrepõem aos problemas de estrutura (e Cumberbatch é o principal responsável por isso), O Jogo da Imitação está entre os grandes filmes do ano, fala sobre um matemático importante para história e ainda encontra a medida certa para abrir a discussão sobre as atrocidades contra gênero e sexualidade. É um filme necessário ainda nos dias atuais e muito bem executado. Deve dar trabalho por aí nas grandes premiações desse ano.
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