Dan Gilroy estreia na direção com muitos méritos. Com uma longa carreira de mais de vinte anos e poucos roteiros escritos durante esse período, Gilroy acerta a mão em um filme que desde já figura entre os melhores de 2014. O Abutre é um filme que cumpre todas as promessas, é tenso, divertido e crítico na medida certa.
Lou Bloom, vivido por Jake Gyllenhaal, é um contraventor apresentado ao espectador durante uma noite de furtos de materiais diversos como cabos de cobre, tampas de esgoto e tudo o mais que encontra para levar a um receptor. Durante a entrega, Lou se oferece a trabalhar legalmente, mesmo sem salário, pois sua ambição é construir uma carreira fora da criminalidade, o que é negado pelo gerente do negócio com a justificativa de que jamais contrataria um ladrão.
A partir daí, Lou se depara em um acidente de carro onde vê cinegrafistas coletando imagens que serão vendidas aos canais de televisão para a pauta dos jornais matinais e vê nisso uma oportunidade. Com mais um delito, compra sua primeira câmera e um rádio de polícia e começa a buscar suas imagens com um talento peculiar para enquadramentos fortes das vítimas de acidentes, o que rapidamente o leva a seu primeiro cliente, um canal dirigido pela personagem de Rene Russo que aposta no sensacionalismo para aumentar a audiência.
E para construir seu protagonista, Gilroy estaca sua primeira ironia no inicio do filme quando Lou tenta uma vaga de emprego, já que o receptor que recusa a vaga devido à natureza criminosa do personagem de Jake é tão bandido quanto, algo que remete diretamente a todos os pequenos delitos cometidos por pessoas em todas as sociedades que se acham boas e dentro da lei, mas que não perdem a chance de sonegar o imposto de renda com uma nota falsa de dentista ou mesmo baixar um filme na internet como se isso não fizesse mal a ninguém.
Além disso, o roteiro de Gilroy é lapidado de forma a estabelecer inúmeros paralelos ao longo do filme entre a atividade dos cinegrafistas e sua corrida pelo furo com a atividade criminosa, como se faltasse a todos a mesma audácia de Lou que, por ser um bandido, quebra todas as barreiras morais e legais para conseguir suas imagens, o que lhe garante a ascensão profissional quase meteórica.
Essa construção de um bandido a um cinegrafista de sucesso é fotografada pelo experiente Robert Elswit com mais cores dessaturadas a medida em que Lou passa a consolidar sua posição, abandonando os cenários inicialmente fotografados sem filtros e com cores naturais do primeiro ato. Com isso, Elswit consegue o impacto desejado quando chapa o vermelho do carro de Lou e, claro, o sangue que persegue nas imagens violentas que captura nas noites da cidade.
O filme é bastante eficiente no aspecto sonoro, que chega a contribuir com a montagem de John Gilroy que se destaca em um momento em que vemos um plano geral da cidade e ouvimos inúmeras transmissões pela manhã ao mesmo tempo e que são filtradas conforme a câmera fecha em um bairro, em uma rua e finalmente na casa do protagonista até que ouvimos apenas os sons da sua TV. É uma sequência genial que serve para mostrar ao espectador o mundo em que o protagonista está prestes a se aventurar, não só pela quantidade de notícias, mas também a qualidade questionável do que consumimos nos programas televisivos.
Gyllenhaal veste um personagem espetacular. Segundo grande papel do ano (O Homem Duplicado é excepcional), o ator entrega um Lou Bloom perturbado e perturbador, um sujeito persuasivo capaz de qualquer coisa para conseguir seus objetivos quando falha em suas negociações (e note como a evolução do personagem é acentuada pelas técnicas de convencimento que emprega ao longo da narrativa). Gyllenhaal tira proveito de tudo o que tem como intérprete, seja na preparação de voz para os ótimos diálogos, seja nos olhares sempre decididos (destaque para o último encontro dele e outro cinegrafista vivido por Bill Paxton) e na postura recolhida de Lou.
Outro personagem que se destaca em muitos momentos é Rick Garcia, que cumpre uma função essencial na trama para mostrar o quão inescrupuloso o protagonista pode ser e também funciona maravilhosamente bem como alívio cômico em uma histórica cheia de cinismo e violência. O que me leva a outro sentimento incômodo sobre a mensagem de Gilroy com esse trabalho. Vivemos em uma sociedade ansiosa por notícias rápidas e somos de fato consumidores dos absurdos que vemos e lemos nos meios de comunicação. Ciente dessa massa faminta que somos, Gilroy leva seu protagonista a buscar as piores tragédias que podem render a melhor história para jornalistas podres e sensacionalistas que sequer se preocupam com a veracidade dos fatos, tampouco as consequências da imagens exibidas nos telejornais.
Como não pensar em Rodrigo Faro, que recentemente decidiu ajudar e exibir uma ex-modelo usuária de crack – ou somos ingênuos demais para pensar que ele levaria a seu programa algum negro pobre da mesma cracolândia? Essa é a força de O Abutre, que nos faz refletir quando, por exemplo, Rick pergunta a Lou se não poderiam filmar uma vítima de estupro em vez de perseguir um acidente que traria riscos à integridade física dos dois. Essa banalização da violência está em nós, somos os consumidores de porcarias como Datena e Marcelo Rezende, entre tantos outros sensacionalistas que vendem sangue em troca de audiência.
E Gilroy é tão consciente disso que nos mostra um plano em um ângulo que coloca a câmera de Lou como uma metralhadora capaz até mesmo de fazer recuar um homem armado. E sim, Lou com sua câmera é tão letal quanto qualquer outro criminoso. Assim como receptores de produtos roubados, produtos ilícitos e materiais pirateados, o que garante a permanência de Lou em seu negócio é o seu espectador, aquele que consome a violência que passa a produzir para garantir o sucesso do seu negócio. Que tal pensarmos sobre a origem de tudo o que consumimos?
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