livre filmeDa filmografia de  Jean-Marc Vallée como diretor, dois filmes entram na minha lista de preferidos: os maravilhosos C.R.A.Z.Y. e  Clube de Compras Dallas são, na minha opinião, filmes que discutem com profundidade os temas que abordam e ainda apresentam personagens que ficam na memória por muito tempo. Se Livre não conseguir se destacar da mesma forma é porque o público deve associá-lo ao longa Na Natureza Selvagem dirigido por Sean Penn poucos anos atrás. A comparação será inevitável, afinal são duas adaptações de histórias de vida de pessoas que deixaram pra trás as vidas que tinham em busca de algo que não encontrariam em sociedade.

E a comparação também é injusta, afinal, enquanto Chris McCandless decidiu viver como selvagem depois de doar tudo o que tinha, em Livre, a protagonista parte em uma trilha com um objetivo bem definido, mas sem a devida preparação, para buscar uma redenção e redescoberta que jamais encontraria se continuasse mergulhada na vida agoniante que levava por causa dos próprios erros, o que foge da pieguice do autoconhecimento que histórias assim abordam constantemente.

Esse é o grande acerto do filme e já sentimos logo na primeira sequência o tom da agonia que simboliza todo o histórico da vida de Cheryl Strayed, interpretada por Reese Witherspoon daquele jeito que fica difícil imaginar outra atriz no papel. Cheryl é uma personagem complexa que foi levada a escolhas ruins por fatores que jamais estariam em seu controle, por mais que quisesse ou tentasse, até que decide caminhar sozinha 1.100 milhas na Pacific Crest Trail.

Pra contar essa história, o roteiro de  Nick Hornby se sustenta em flashbacks que, caso raro, funcionam perfeitamente graças a uma excepcional montagem de Martin Pensa e Vallée, que abusam de raccords temáticos, visuais, sonoros e de movimento para saltar no tempo da narrativa de forma agradável e sem que isso enfraqueça a construção da personagem principal. A partir de gatilhos na memória de Cheryl, a montagem ora usa uma canção para saltar a um flashback que funciona praticamente como um plano subjetivo, assim como as sequências memoráveis de quando ela sente o alívio durante um banho quente enquanto é torturada por uma dolorosa lembrança e uma outra cena onde gemidos de dor e de prazer se confundem em duas narrativas paralelas. E o que dizer de planos alternados no gelo da neve com a frieza de um hospital?

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A cinematografia de Yves Bélanger é outro ponto forte do longa. Ele acerta ao investir em cores que acentuam o perigo e o aspecto surreal que essa viagem representa na vida de Cheryl. Note a presença do vermelho durante os momentos que antecedem a partida da protagonista, perceba como ela é envolvida pela cor enquanto está em um hotel de beira de estrada e como Bélanger muda a fotografia gradualmente até que fique um único ponto vermelho distante em uma placa quando ela inicia a caminhada, já determinada a cumprir a trilha após uma última decepção ainda no hotel. Além disso, a mise-en-scène de quando ela coloca a mochila nas costas é perfeita, pois ilustra muito bem o peso que ela carrega nas costas, tanto no sentido literal quanto no sentido figurado. Tanto é que haverá ecos disso quando ela repensar o peso que carrega na mochila, afinal, não é prudente que deixemos coisas pelo caminho de tempos em tempos? Todo o design de produção de John Paino é bastante cuidadoso na escolha de cada elemento que entra em cena e complementa perfeitamente o trabalho de Bélanger. O que ele faz com uma placa de “Pare” é digno de crédito pelo peso dramático que simboliza nos dois momentos que surge.

Com uma direção segura, Vallée extrai tanto de Witherspoon quando de Laura Dern (que interpreta a mãe de Cheryl) atuações magníficas. O diretor busca em muitos momentos, mostrar como pequenas dores e pequenos prazeres se tornam enormes na vida das pessoas. Não hesita em mostrar as cicatrizes que ficam nas pessoas depois do que enfrentam e mais uma vez usa o literal para acentuar o figurado. O que o diretor faz com um corpo cheio de hematomas é outro grande e lindo momento do filme. Outro destaque para câmera de Vallée é um plano fechado nos olhos de um cavalo e um plano onde uma parede divide o rosto de uma criança. Aqui, é o figurado que mostra uma criança bastante fragilizada pelos horrores que sofre. Esse cuidado do diretor fica ainda mais forte quando Cheryl diz “Tudo dói o tempo inteiro”. A genialidade não está na frase, mas no momento em que ela é dita, pois representa muito mais do que parece.

O filme ainda tem uma trilha sonora bastante inspirada em canções que remetem à liberdade e corresponde com a proposta do filme, que flerta com sociedades alternativas – e não poderia ser diferente. Apesar de ser um drama denso, é contado com uma certa leveza ao longo da projeção (e por isso acho muito importante a agonia do começo). Ao estilo do diretor, aqui e ali há alívios cômicos bem equilibrados, mas logo somos lembrados das dores da protagonista e da redenção que ela enfrenta. Aliás… a vida é isso mesmo, não?

Author

Escritor e Crítico Cinematográfico, membro da Associação Paulista de Críticos de Arte e da Sociedade Brasileira de Blogueiros Cinéfilos.

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