Em A Origem, o diretor e roteirista Christopher Nolan impressionou o público com a genial sequência em que os personagens estão em diferentes camadas do sonho, cada uma com uma relação de tempo. Se você não se lembra, dez horas de sono naquele longa eram uma semana no primeiro nível, meses no segundo e dez anos no terceiro. Além de cumprir uma função essencial na narrativa daquele filme, Nolan e seu habitual montador Lee Smith construíram um momento memorável do cinema, onde vemos as ações nas três camadas do sonho simultaneamente com uma diferente taxa de quadros por segundo onde o tempo supostamente se passava mais lentamente comparado à sequência em tempo real. E o que isso tem a ver com Interestelar?
Bem… tudo. Se antes Nolan se deteve a mergulhar no inconsciente humano para mostrar a construção dos sonhos, dessa vez ele olha pra fora, para o espaço, e deixa claro que sua discussão sobre a transcendência começou no limbo dos sonhos humanos e chegou o mais longe que pôde, em outra galáxia, onde uma hora equivale a sete anos terrestres – o contrário do que fez em A Origem e com consequências ainda mais dolorosas para o ser humano.
Matthew McConaughey vive com outro pé no Oscar o astronauta Cooper, que ingressa em grupo de exploradores da NASA, que por sua vez descobriu um buraco de minhoca próximo a Saturno e executou algumas missões de reconhecimento em busca de outros planetas habitáveis, já que a Terra está prestes a ser sufocada por enormes tempestades de areia e a consequente falta de oxigênio. A partir dos estudos do Professor Brand (Michael Caine, intenso como sempre), os exploradores Cooper, Amelia (Anne Hathaway), Doyle (Wes Bentley), Romilly (David Gyasi) e o simpático robô TARS partem em uma missão arriscada que, mesmo com sucesso, custará anos da vida de pessoas queridas que ficaram pra trás, além da possibilidade de estarem todos mortos na Terra quando retornassem devido à relatividade.
Desde já mais uma joia da ficção científica, Interestelar respeita o gênero e cumpre sua tradição de fazer perguntas, de ir além, de levar seu espectador a pensar em coisas que ainda não tem controle, respostas ou mesmo pistas de por onde começar a perguntar. Nesse caso, o filme trata de transcendência, um tema recorrente na literatura, na TV e no cinema sci-fi. Só nesse ano já tivemos três longas que discutiram o tema, uns com mais, outros com menos sucesso e competência. O Teorema Zero de Terry Gillian, Lucy de Luc Besson e Transcendence de Wally Pfister.
Nolan aborda o tema de forma grandiosa sem perder nada no aspecto narrativo comparado ao que fizera Kubrick na versão cinematográfica do livro de Arthur C Clarke. Aliás, são muitas as referências a outros filmes de exploração espacial, principalmente à 2001: Uma Odisseia no Espaço. É inevitável comparar TARS e CASE a HAL (e não, isso não é spoiler) e até mesmo seu aspecto físico remete ao monólito. Nolan ainda investe em um movimento de câmera para mostrar a superfície de Saturno com uma incrível fidelidade ao livro, não consigo ver essa sequência senão como uma outra referência a um grande momento de 2001.
A trilha de Hans Zimmer é, mais uma vez, impecável. Cresce com a narrativa, ajuda na construção da tensão e do clímax. Aliás, todo trabalho técnico de som está impecável com momentos que Nolan faz questão de usar em prol da narrativa (NOTA: depois que vi em outra sala, notei diferença na mixagem, o que sim, compromete o trabalho técnico). Um detalhe bastante sutil no desenho de som envolve uma cena com fones de ouvido, quando então ouvimos grilos e chuvas – algo nostálgico considerando o planeta árido e com tempestades de areia. Note também o momento em que Cooper tenta se comunicar com um personagem que surge já no terceiro ato e veja como o som de sua voz é interrompido antes que sua frase se completa, em um exemplo da ótima montagem de Smith.
O filme tem uma montagem inspirada em muito momentos. Como o montador tem nas mãos quase um século de história para contar, faz um trabalho cuidadoso desde o início, quando inclui trechos de entrevistas de pessoas idosas que sobreviveram a mais um cataclismo no planeta entre as cenas da narrativa presente. Outra ponto forte da montagem é o raccord utilizado dez segundos antes do lançamento da espaçonave com a equipe de Cooper, onde vemos uma simbólica e emocionante contagem regressiva em off que poderia ser perfeitamente dita na situação que vemos na tela.
Falando no cataclismo emitente, Nolan nos coloca diante de uma sociedade já mergulhada em outro obscurantismo. Esse é o verdadeiro cataclismo. Com uma clara crítica às amarras impostas por aqueles que negam a ciência em prol de qualquer credo, o diretor inclui importantes sequências que mostram algumas pessoas inertes diante da tragédia que varrerá a vida do planeta, que se recusam a cuidar de doenças e que, mesmo nas escolas, tratam a exploração espacial como um mito inventado pelos EUA para enfraquecer a URSS. Com isso, Nolan não apenas mostra o poder político na alienação da educação, como ainda sugere que temas assim podem durar décadas, afinal o filme se passa em um futuro próximo do nosso tempo, talvez uma ou duas gerações a julgar pela tecnologia disponível ali.
Esse obscurantismo está em Interestelar para nos mostrar o quanto é tão nocivo e mortal para a humanidade quanto qualquer fenômeno natural. Não à toa, o quarto da jovem Murph (Jessica Chastain – também vivida por Mackenzie Foy quando criança e por Ellen Burstyn quando idosa) parece ser um recluso templo de sabedoria com todos aqueles livros, verdadeiros elos entre gerações e, aqui, dimensões. A hermenêutica por trás do uso de uma estante de livros nos permite pensar no poder de comunicação que temos através dos nossos registros e forma uma poderosa e emocionante alegoria.
Os efeitos especiais e visuais estão do jeito que se espera em uma produção do gênero nas mãos da equipe de Nolan e ainda são bem utilizados para criar rimas visuais que equilibram a viagem e os mundos distantes. Assim, vemos uma imensa nuvem de poeira que se assemelha em tamanho e periculosidade a um enorme tsunami, um planeta em chamas e outro congelado, ou mesmo a refração da luz do nosso sol posicionado à esquerda da tela quando partem rumo ao inesperado em um plano idêntico a outro que mostra uma estrela distante, agora posicionada à direita da tela, cuja refração é direcionada no sentido oposto, bem como a limitação física de um personagem já fragilizado em sua cadeira de rodas comparada aos meios de transporte usados para uma viagem muito além dos limites humanos.
Limites. Aqui entram todas as hipóteses abertas pelo diretor. Libertos do obscurantismo pelo amor e pelo conhecimento, o ser humano seria capaz de transcender, de se misturar ao todo e de abdicar de sua vida pela sua espécie? Como seria a reação humana se pudesse assistir em poucos minutos a vida inteira de quem ama, sem que pudesse ter dado ao menos um consolo nos momentos difíceis? Aberto a diversas interpretações, Interestelar tem um desfecho que, pra mim, remete ao longa A Origem. Remete ao infinito do universo e ao infinito da mente humana.
Aberto a interpretações, gosto de pensar na subjetividade que o filme sugere em alguns momentos, estes que detalho abaixo, com spoilers. Eu tinha O Homem Mais Procurado como o filme do ano. Interestelar tomou o posto e é forte candidato a grandes prêmios do cinema em várias categorias. Se você já tiver visto o filme, deixo meu entendimento sobre o final no próximo parágrafo. Caso não tenha visto, peço que volte depois – mesmo se não se importar com spoilers, pois o você merece pensar sobre mais essa obra espetacular de Nolan e chegar às suas próprias conclusões.
[box type=”warning” align=”aligncenter” ]SPOILERS! GO AWAY![/box]
Já viu o filme? Sim? Ok. S T A Y!
Na minha interpretação, é o epílogo do filme que me leva à subjetividade do protagonista, a uma projeção arquitetada por sua mente assim como fazia a personagem de Ellen Page nas camadas do sono (note cada referência no cenário), e por isso citei A Origem no início do texto. É claro que são filmes diferentes e sem relação direta, mas acredito que aquilo seja sim uma mensagem de Nolan. Ou seja, tudo foi real até o momento que Cooper se comunica com a filha no passado. Aquele é o momento de sua transcendência. O hiperespaço construído atrás da estante de livros de Murph é a chave para a compreensão de como Nolan manipula o tempo, o que fica óbvio. Assim que Cooper fecha o seu arco, ele entende o que deveria fazer para salvar a humanidade, vemos a partir daí os últimos momentos da sua consciência.
Nesse ponto, já entendemos que o tempo tal como o mensuramos não importa. Toda a sequência final pode ter durado um instante, como pode ter durado milhões de anos. Ele vê a cidade tal como a deixou e a filha, agora no leito de morte, volta a ver o seu “fantasma”. A vida da filha era a única coisa que ainda o prendia ao plano tridimensional. Note como ninguém naquela sala, nenhum familiar, fala com Cooper. Murph diz ao pai que ele deve partir em busca de Amelia (que, entendo, colocará em prática o “Plano B”). Então vemos Cooper, com outro figurino (uma roupa de astronauta preta, o que me sugere sua morte) partir na direção das estrelas, sem nenhuma sugestão de que encontrará o outro sistema.
UPDATE em 08/11/14: revi o filme, sigo com a mesma interpretação. Ela está na tela, pode ser sustentada com os elementos que citei acima e também pode ser perfeitamente refutada por quem opta por uma interpretação literal. Gosto mais de pensar na transcendência e em um terceiro ato subjetivo. Se as coisas estão ali sugerindo que tudo é real, eu me apoio no diálogo de Cooper e TARS, ali no hipercubo, onde é dito que aquela forma tridimensional foi criada para que ele pudesse entender o que estava acontecendo. Assim o é, pra mim, todo o terceiro ato, mas pra nós espectadores.Vemos o terceiro ato daquela forma porque é como conseguimos entender, visualizar. Se não for assim, eu teria que aceitar um corpo de 120 anos terrestres resgatado em Saturno depois de passar por um buraco negro. E isso, amigos, arruinaria o filme pra mim.
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