No ano de 1974, Philippe Petit realizou o impossível: utilizando um cabo de aço que ligava o topo das Torres Gêmeas, atravessou de um lado ao outro várias vezes apenas equilibrando-se sem uso de nenhum equipamento de segurança. Ele não era um louco. Ele era um artista. Esse tipo de travessia vista somente em circos e em apresentações de trovadores nas ruas das grandes cidades era apenas uma das muitas facetas do mágico, malabarista, monociclista e mímico francês de então 24 anos que, atraído pelo desejo de fazer algo grandioso, planejou por seis anos a travessia que o deixaria famoso no mundo todo.
Essa é a história que ele conta em seu livro To Reach the Clouds, dirigido por Robert Zemeckis, que também assina o roteiro adaptado ao lado de Christopher Browne. O protagonista é vivido por Joseph Gordon-Levitt, uma entrega completa do ator para a composição de um trovador único capaz de enfrentar o que for preciso para que sua arte se manifeste da forma mais pura: transgressora, inconveniente, audaciosa e subversiva ao mesmo tempo que é bela, plástica, poética e inesquecível.
Esse é o tom do roteiro. Os roteiristas optam por estruturar a história com a narração do próprio Petit, o que necessariamente já entrega ao espectador que não conhece a história real, onde todo o plano dá certo e logo ninguém vai cair do alto do World Trade Center. Por mais óbvio que isso pareça, narrativamente é importante para que nos concentremos na construção do personagem e de todo o time que o auxiliará na façanha, que é onde reside toda a força do roteiro. Assim, Browne e Zemeckis conseguem fazer com que a travessia funcione como uma analogia à vida, onde constantemente caminhamos equilibrados em cordas esticadas ou bambas, baixas ou altas, mas sempre dependentes de uma minuciosa preparação com coragem, cuidado e determinação.
Ao reunir um grupo de entusiastas em um projeto pra lá de perigoso, Petit percebe preço do seu sonho à medida que o dia escolhido se aproxima. Depois de entusiasmar pessoas para colaborarem em seu plano, Petit sente o peso de não poder voltar atrás quando está perto de dar o primeiro passo na corda, aquele momento da realização de um sonho grandioso, aquele momento onde tudo pode dar certo ou errado na mesma proporção, afinal, é durante os três passos finais que caem os equilibristas. Qualquer pessoa que já liderou uma equipe irá se identificar com o roteiro desse filme e deve sentir esse peso junto com o protagonista.
Zemeckis faz uma direção maravilhosa. Como se trata de um filme sobre um equilibrista, o diretor usa e abusa de belos planos abertos e aéreos de Paris e Nova Iorque e planos plongé em alturas diferentes que funcionam para mostrar ao espectador a evolução das habilidades do protagonista, cada vez mais alto desde os primeiros passos em uma estrutura de cinco cordas esticadas (um raccord lindo, por sinal, para avançar o tempo de treinamento). Além da função narrativa, Zemeckis causa agonia com movimentos de câmera que simulam a movimentação como se espectador estivesse lá (e esse é mais um dos poucos exemplos de 3D muito bem aplicado). O diretor passa a fechar os planos nos detalhes para acentuar a concentração de Petit em contraste com sequências mais longas para construir o antagonista do filme: o World Trade Center.
A cinematografia de Dariusz Wolski está mais uma vez impecável. Desde o preto e branco do prólogo com poucos objetos coloridos (aqueles que chamam a atenção de Petit), passando pelas cores de paris, pelo surreal ambiente circense até oprimir o protagonista com tons frios que favorecem a onipresença das torres. Aliada a uma impecável montagem cheia de raccords interessantes que alternam entre planejamento e execução, A Travessia oferece um espetáculo visual digno de indicações a prêmios nessas categorias.
Sozinho, Petit jamais venceria as Torres Gêmeas. Ao longo da narrativa passamos a conhecer os “cúmplices”, afinal, se trata de um ato ilegal – fator motivador a todos eles. Elenco muito bem dirigido de atores que não ficam atrás da interpretação de Gordon-Levitt. O sempre magnético Ben Kingsley é seu mentor Papa Rudy, Charlotte Le Bon vive sua namorada Annie que o acompanha em cada decisão, Ben Schwartz como seu fotógrafo oficial Albert e César Domboy como um matemático com medo de altura, que rende ótimos momentos e o alívio cômico necessário durante os momentos de tensão.
Além de tudo isso, A Travessia é ainda uma belíssima homenagem ao World Trade Center. É uma homenagem cheia de dignidade, pois, veja só, aqueles fanáticos religiosos passaram por um longo planejamento para destruí-lo. Conscientes disso, Zemeckis e Browne usam essa fase de estudo para um ato criminoso que, em vez de trazer a morte e a destruição, deu alma ao projeto arquitetônico mais ambicioso daquele tempo. Os roteiristas fazem com que aquelas torres se tornem personagens importantes dessa história, antagonistas à altura do sonho de Petit. Com essa abordagem, podemos assumir que foram assassinadas no 11/9, quando já eram velhas amigas do artista, que ficou apenas com um bilhete de passe livre para a cobertura no qual estava riscada a data de validade, ironicamente substituída pela palavra “Forever”.
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