Réquiem por um Sonho (2000) – Dirigido por Darren Aronofsky, com Jared Leto, Jennifer Connelly, Ellen Burstyn, Marlon Wayans.
Réquiem por um Sonho é um dos filmes mais inquietantes que já vi. Rico em linguagem, é uma obra que aposta em muitas rimas visuais como veremos adiante, com belíssimas interpretações dos quatro atores principais e com uma montagem e trilha que conferem peso ao drama, fazendo o espectador absorver as tragédias pessoais como poucos longas conseguem. O diretor é Darren Aronofsky em um dos seus primeiros trabalhos em um período onde novos cineastas começavam a inovar as maneiras de contar histórias, como os três exemplos mais ou menos da mesma época e dos quais gosto muito: Nolan em Memmento (do mesmo ano, 2000), Soderbergh em Traffic (2001) e Iñarritu em 21 Grams (2003).
O objetivo deste texto é mostrar como Aronofsky utiliza elementos de linguagem, cores, figurino, posição de câmera e inserções subjetivas para conduzir o espectador a uma experiência angustiante ao acompanhar a vida de quatro viciados em drogas lícitas e ilícitas. Basicamente divido em três capítulos (Verão, Outono e Inverno), acompanhamos a decadência da vida de Harry Goldfarb (Leto) e de três dos personagens a ele ligados intimamente: sua mãe Sara Goldfarb (Burstyn), uma viúva deprimida, sozinha e solitária que se entrega à lavagem cerebral televisiva e que alimenta o sonho de aparecer em um show para contar sua história; Tyrone C. Love (Wayans), amigo de Harry que se torna seu sócio ao tentar se consolidar como distribuidor de drogas na cidade; Marion Silver (Connelly), jovem namorada de Harry e que fugiu dos pais por conta da sua dependência química.
O primeiro destaque já na sequência inicial mostra Harry desligando a TV da mãe que se tranca em um quarto. O diretor utiliza a divisão da tela que será recorrente durante a projeção sempre que Aronofsky quiser aproximar ainda mais os coadjuvantes do protagonista. Assim, vemos dois planos, de Harry e da mãe, divididos da seguinte forma:
Esta cena parece mostrar ao espectador uma natureza violenta do jovem, mas na verdade imediatamente acentua a loucura de Sara quando fala ao seu falecido marido, negando que aquilo estava acontecendo. Quando percebemos que a vida de Sara se afasta cada vez mais da realidade, fica claro que ali ela estava se negando a acreditar no vício do filho, e não fugindo de um garoto violento.
Este mesmo recurso será utilizado para aproximar Harry e a namorada Marion em um dos poucos momentos serenos do filme, onde os planos se alternam entre olhares e carícias divididos na tela como na sequência citada acima:
Este recurso se torna ainda mais interessante quando utilizado para aproximar Harry e Ty. Se nas sequencias anteriores de Harry a divisão da câmera evidenciou o sentimento entre ele e Sara separados por uma porta trancada e entre ele e Marion sem nada entre eles, o relacionamento entre Harry e Ty, quando conseguem iniciar a sociedade e portanto passam a estar intimamente ligados, é aproximado colocando lado a lado o efeito das drogas nos olhos dos dois da seguinte forma:
Este quadro pertence a uma sequência de cortes rápidos que Aronofsky já utilizara para indicar o uso de substâncias que causam a dependência de cada um. Todos, sem exceção, são submetidos a essas inserções antes de sequências nas quais estão sob efeito de drogas.
O espectador rapidamente entende essa linguagem utilizada pelo diretor e logo vemos cortes rápidos para pílulas, cigarros de maconha, carreiras de cocaína, seringas e mesmo café, com a clara indicação de que Sara se entrega a dependência de qualquer substância que a altere. Adiante, Aronofsky mistura as duas linguagens para aproximar a seguinte relação de Sara com a geladeira que passa a atormentá-la durante o regime forçado:
Ainda através de sequências estética e logicamente semelhantes, o diretor repete cenas do subjetivo dos personagens, interrompendo logo depois de nos mostrar quais seriam as verdadeiras intenções de Harry, Sara e Marion para seguir com história. Isso acontece com Harry roubando a arma do policial:
Com as alucinações de Sara quando os doces descem do teto…
… e quando seus desejos reprimidos se manifestam na sua sala:
Por fim a garfada de Marion no sujeito a quem se entregará por drogas:
O interessante dessa repetição de sequências subjetivas é que todas elas acontecem quando os personagens estão sem uso de drogas. Contextualizando Sara e Marion, a primeira decide buscar ajuda médica para emagrecer e a garota estava prestes a transar por dinheiro e assim conseguir o capital inicial para Harry voltar ao negócio ilícito.
E é nessas duas personagens que o figurino tem fundamental papel para o desenvolvimento da tragédia presente nos arcos de ambas. Sara é apresentada sem nenhuma cor vibrante e passa a buscar o vermelho ao longo da projeção, simbolizado pelo vestido que usou na formatura de Harry e que supostamente despertava o desejo do marido. Já Marion é apresentada vestindo um azul forte e passa a utilizar roupas em tons de cinza a medida que se afunda no uso de entorpecentes até assumir um figurino completamente preto, o que inclui o cabelo (sem as mechas claras do começo) e o batom escuro que usará em um momento crucial do seu arco dramático.
Falando das cores, a laranja é normalmente vinculada a momentos trágicos dos personagens em todos os momentos que aparece, como vemos a seguir:
A primeira pílula dos jovens oferecida por Marion:
O cabelo tingido de Sara:
A laranja em sua dieta:
A laranja na mão da mãe no passado negado de Ty:
A laranja descascada pelo traficante na última tentativa de Harry e Ty de se tornarem distribuidores:
E por fim no caminhão que definirá o destino dos dois jovens no terceiro ato:
Não por acaso, a presença da cor laranja indica mudança nos rumos e nos hábitos de todos, sempre com consequências piores.
A fotografia do filme reforça a piora de comportamento e o diretor utiliza lentes angulares para mostrar esses momentos quando os personagens intensificam o uso das drogas, como nos planos abaixo.
Na festa com os três jovens:
No consultório com Sara:
O grande momento de Sara está em um discurso onde aponta suas razões para querer tanto caber em um vestido vermelho e estar na televisão. Neste momento importante da narrativa, Aronofsky utiliza um recurso nada comum para mergulhar o espectador na história. Enquanto mãe, já utilizando os remédios para emagrecer, e filho conversam sobre boas notícias, o eixo da câmera está assim:
… e imediatamente após Sara voltar a falar com Seymour, falecido marido, o diretor cruza o eixo de 180 graus com um travelling na expressão de Harry e juntos com o personagem constatamos os tiques e o vício de Sara, em uma sequência extraordinária de Ellen Burstyn:
Com isso, o diretor, ciente do efeito que causará no espectador ao quebrar o eixo de 180 graus, muda completamente o sentido da conversa dos dois que jamais se reencontrarão.
Jennifer Connelly também tem seu momento, mas é a montagem e a mise-em-scène que define o peso dramático da sequência onde se corrompe pela primeira vez ao transar por dinheiro. Primeiro, o quadro, muito fechado, mostra a violência sexual à qual foi submetida (que é muito menor do que aquela a qual se submeterá ao final do terceiro ato):
Há a preocupação do diretor em mostrar um quarto muito fechado, totalmente diferente dos ambientes onde Marion e Harry transaram em cenas anteriores, totalmente abertos e confortáveis, apesar da ausência de cores dos ambientes já decadentes. Ao sair do apartamento, Marion continua registrada com a câmera na mesma posição no plano sequência no corredor…
… até que chega ao elevador, um ambiente de fato fechado, claustrofóbico, com dois homens, para aumentar ainda mais a tensão da garota:
Até que ela tem seu primeiro crash:
Todos os elementos citados acima se intensificam no terceiro ato, quando é inverno e isso é uma obvia metáfora para a fase mais fria da narrativa dos quatro.
O terceiro começa com Sara completamente louca andando pela cidade em busca de uma TV que nunca existiu…
…e então conhecemos uma Marion já entregue à prostituição por drogas pesadas,
… Ty preso após ter levado Harry ao hospital (em um interessante plano formando uma rima visual com o plano de Marion no elevador)…
… e finalmente o protagonista sujeito a uma amputação após uma infecção no braço onde injetava seu vício.
Aronofsky chega ao extremo de todos os arcos dramáticos com uma montagem da sequência clímax do longa através cortes rápidos e outros planos fazendo uma perfeita junção das histórias começando com o questionário dos policiais (“Enxerga? Escuta? Pronto para o trabalho”) e raccords visuais nada agradáveis, como a posição dos condutores do eletrochoque em Sara com a posição de Marion e outra garota quando obrigadas a fazer o que é chamado de ass-to-ass durante uma orgia, assim como o movimento do trabalho forçado de Ty e a inserção de um brinquedo de borracha em Marion.
Encerrando a narrativa de forma belíssima, o diretor utiliza planos plongé para mostrar que todos terminam seus arcos na mesma posição fetal, já que todos intimamente encontraram seus desejos e ali devem ficar:
… exceto Harry…
… que termina sua narrativa com o mesmo abraço…
… que dera em sua mãe na última despedida dos dois:
Talvez não seja um filme tão cultuado quanto serão as obras seguintes do próprio Aronofsky (especialmente Cisne Negro), mas é sem dúvida nenhuma um excepcional filme repleto de linguagem, com uma narrativa complexa, com elementos áudio visuais aplicados para que a narrativa se tornasse uma experiência minuciosamente desagradável e que deve ser assistido no detalhe para apreciar todo o cuidado do diretor.
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