Dizer que, historicamente, a mulher sempre teve dificuldades para conquistar seu lugar na sociedade, é chover no molhado. Mas essa luta por direitos iguais é antiga também no Cinema. Claro que, nos bastidores, o tratamento lamentavelmente continua desigual, mas este Mulher-Maravilha é um ótimo ponto de partida ou, no mínimo, uma grande oportunidade para, ao menos, vislumbrarmos um futuro mais esperançoso.
Afinal, por mais lamentável que seja, não é nenhuma surpresa que este seja o primeiro grande blockbuster estrelado por uma super-heroína (por favor, esqueçamos aberrações como Elektra e Mulher-Gato).
Mais evidente do que todo o simbolismo que envolve a produção, Mulher-Maravilha é, de fato, um bom filme e tudo fica ainda mais impactante se levarmos em conta que trata-se do mesmo estúdio que recentemente lançou o fraquíssimo Esquadrão Suicida (e vem patinando para construir seu próprio universo super-heróico), e não daquele outro que vem acumulando sucessos de bilheteria há quase 10 anos (e cujo “universo” já está estabelecido).
Verdade seja dita, a Warner/DC merece aplausos pela coragem de lançar a personagem em grande estilo, ao invés de relegá-la ao segundo plano como vem fazendo a Disney/Marvel em relação à Viúva Negra, que mesmo usufruindo de grande prestígio entre os fãs, ainda não teve a chance de protagonizar seu próprio filme.
Escrito por Allan Heinberg (da série Grey’s Anatomy) baseado numa idéia de Jason Fuchs (Peter Pan de 2015) e Zack Snyder (que dirigiu Batman vs. Superman e coordena a criação do universo da DC), o roteiro apresenta a típica estrutura de filme de origem, retratando a infância de Diana (Gal Gadot, a Gisele de Velozes e Furiosos 6 e 7) na paradisíaca e fictícia Ilha de Temiscira, lar das míticas Amazonas.
Além de mostrar seu treinamento enquanto cresce ao redor de respeitáveis guerreiras, Heinberg é hábil também ao retratar o crescimento de Diana e seu desejo latente pela oportunidade de colocar suas habilidades à prova e não é à toa que todo o primeiro ato se concentra nessa fase da vida da futura Mulher-Maravilha.
A montagem do experiente Martin Walsh (vencedor do Oscar por Chicago), também merece elogios, por construir todos os combates como um grande e elegante balé de golpes, numa decisão acertada e que, além de permitir que o espectador entenda toda a ótima coreografia das lutas (que combina acrobacias a golpes precisos), faz com que o filme seja coerente ao distanciar o estilo das Amazonas da tradicional brutalidade masculina. Sim, a produção abusa da câmera lenta (um reflexo do produtor Snyder), mas isso não chega a tirar o espectador do filme, pelo contrário, já que o artifício é tão usado com tanta precisão que chega a dar certo charme às inúmeras sequências de ação.
E por falar nelas, a californiana Patty Jenkins (que dirigiu o ótimo Monster: Desejo Assassino) mostra um olhar aguçado para a ação, filmando os confrontos físicos sem apelar para a famigerada “Câmera Epilética” (marca registrada do cineasta Michael Bay, por exemplo) e aproveitando todo o potencial do cenário, como na cena que começa no interior de um casarão e termina com a heroína correndo pelo telhado.
Aliás, o design de produção assinado por Aline Bonetto (indicada ao Oscar por O Fabuloso Destino de Amélie Poulain) é outro ponto positivo de Mulher-Maravilha, pois promove um verdadeiro espetáculo ao retratar com exatidão, não só o típico estilo da época, mas também pela riqueza de detalhes das sequências que se passam num campo de batalha e que evidenciam, paralelamente, a competência do departamento de som do longa.
Por outro lado, se a trilha sonora do regular Rupert Gregson-Williams (do fraco A Lenda de Tarzan) aproveita bem o ótimo tema criado por Hans Zimmer em Batman vs. Superman, a fotografia de Matthew Jensen (do desastroso Quarteto Fantástico, de 2015) não prima pela sutileza, investindo em paletas diametralmente distintas para diferenciar, por exemplo, as cenas ambientadas em Temiscira daquelas que se passam na guerra (e note a intensidade do amarelo, quase estourado na sequência em que Steve Trevor foge de avião).
Steve Trevor, em contrapartida, é interpretado com leveza pelo talentoso Chris Pine (o Kirk de Star Trek), conferindo carisma e humor ao espião norte-americano, que serve para Diana como um elo entre a lúdica Temiscira e a crua sociedade da década de 40. E Pine é particularmente eficaz em suas interações com Gal Gadot, revelando-se fundamental para o sucesso da dupla (perceba que não utilizei o termo “casal”).
Mas é óbvio que Gal Gadot é o grande destaque da produção: inteligente ao adotar uma inocência que é seminal para nosso envolvimento com o arco de Diana, a atriz israelita transforma sua heroína numa figura, que em nenhum momento deixa de convencer como a mulher pura e nobre que de fato é, saindo-se igualmente bem nas vastas e complexas sequências de ação que protagoniza.
Vale destacar também o carisma de Gadot e a simpatia que a separa de seus colegas mais sisudos. Aliás, para não perder a oportunidade, a produção prova que a Warner/DC também sabe fazer filmes fora do tom “sombrio e realista”.
Com relação ao elenco secundário, a norte-americana Robin Wright (da série House of Cards) e a dinamarquesa Connie Nielsen (Gladiador) emprestam dignidade e equilíbrio a Antiope e Hippolyta, respectivamente, personagens que fazem jus à tarefa de contribuir para a formação do caráter de Diana. Já Danny Huston (o Stryker de X-Men Origens: Wolverine) surge discreto na pele do vilão Luddendorf, uma espécie de filho mimado de Hitler.
Não poderia deixar de mencionar também o caráter simbólico do roteiro que, mesmo que ofereça diálogos pobres e escorregue na pieguice em alguns momentos (“Eu acredito no amor”, “Eu vou destruir você”), mostra-se disposto a discutir temas relevantes, mesmo que, repito, faça isso de forma trôpega.
Em certo momento, por exemplo, um negro comenta que gostaria de ajudar na guerra, mas que “possui a cor errada”, já em outro, uma mulher comenta que “um dia espera poder votar”, mas se o script é desajeitado na abordagem, a diretora Patty Jenkins faz questão de incluir uma cena em que Diana, perplexa com a falta de coragem de um coronel, grita e gesticula numa sala em que é a única mulher presente.
E é claro que é possível ouvir um “o que uma mulher está fazendo aqui?”.
Mas poucas imagens são tão emblemáticas como aquela em que a Mulher Maravilha surge imponente num campo de batalha, lutando lado a lado com soldados norte-americanos. Só que aqui, não é a mulher que precisa ser salva pelo homem e sim o contrário.
E são momentos como este, que fazem de Mulher-Maravilha um filme acima da média.
Um filme que não chegou só para provocar gargalhadas e ser esquecido após uma cena pós-créditos. Mas um filme que tem a ousadia de apresentar uma heroína com “H” maiúsculo, que não foge do debate e, principalmente, que não tem medo de colocá-la em seu devido lugar: o mesmo patamar dos homens.
E Mulher-Maravilha não possui cena pós-créditos.
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