Doutor Sono

No final dos anos 90 houve uma febre de refilmagens e até Gus Van Sant teve o descaramento (ou o desespero financeiro) de refilmar Psicose (1960) de Alfred Hitchcock. O filme foi considerado ruim pelo público e pela crítica. Nada contra refilmagens, mas quando você não é um grande mestre do suspense como Hitchcock, você não deveria tentar refazer uma obra dele.

Doutor Sono não é uma refilmagem de O Iluminado (1980) do primoroso Stanley Kubrick, mas fica a pergunta: foi arrogância ou ingenuidade que motivou o diretor Mike Flanagan a tentar realizar a sequência de um clássico do horror dirigido por um dos 10 melhores cineastas do século XX?

Mike Flanagan não é um mau diretor, na verdade até é bom. Seu primeiro longa, Absentia (2011), produzido com financiamento coletivo, indicava uma futura promessa. Seu segundo horror, O Espelho (2013), surpreendeu uma história relativamente original com ótimas sacadas de roteiro e truques de edição. E a criação e direção da série A Maldição da Residência Hill (2018) parece ter conquistado uma ótima audiência no Netflix e elogios da crítica.

Mas infelizmente ser um diretor esforçado e de certo talento não faz de ninguém um Kubrick e tentar seguir seus passos achando que vai fazer um filme que chegue perto do original é burrice. O diretor, no entanto, parece estar em negação, pois disse que tanto Stephen King, autor dos livros, quanto a Fundação Kubrick, gostaram do filme. Mas durante toda a pré-produção e as filmagens, ele estava sendo mais realista e relatou uma tremenda cobrança de si mesmo, muitas dúvidas e em diversas ocasiões disse que teve vontade de vomitar (literal e metaforicamente) por conta de estar cometendo um sacrilégio contra a obra de Kubrick.

Bem, não se pode dizer que ele estragou O Iluminado. Afinal, o filme continua lá para ser revisto e descoberto por novas gerações. Mas Doutor Sono não. É sabido que King odiou a versão de Kubrick para seu livro. Alguns anos depois King resolveu ele mesmo mostrar ao mundo o que era cinema e escreveu e dirigiu Comboio do Terror (1986).  E desde sempre, O Iluminado é considerado uma obra-prima e Comboio do Terror entrou para aquela famosa lista de filmes trash involuntários, mostrando que talento e bom gosto nem sempre andam juntos.

Interessante notar que apesar de ser uma continuação de O Iluminado, o livro no qual se baseia Doutor Sono não tinha tantas referências ao primeiro livro, mas Flanagan fez questão de colocar as referências do filme de Kubrick para agradar a si mesmo e aos fãs do filme. Não parece ter dado muito certo. No filme seguimos os passos do filho de Jack Torrance (Jack Nicholson), Danny (Ewan McGregor, meio perdido). Traumatizado e sem saber o que fazer com as aparições assustadoras que o perseguem por conta de sua “iluminação”, Danny é ajudado por um fantasma camarada vindo do filme de Kubrick. Aliás, personagens do primeiro filme estão nessa continuação e não sei se foi uma questão de orçamento não inserir digitalmente os rostos e vozes originais dos atores ou se foi uma escolha do diretor, mas o fato é que foi um erro lamentável contratar atores “parecidos” com os originais. Para mim, esse foi um dos momentos mais desconfortáveis do filme e fiquei com pena de Henry Thomas (sim, o menino que fez ET).

 Apesar da trama trabalhar temas adultos como alcoolismo, depressão e o assassinato brutal de crianças, Flanagan falha em conseguir instilar empatia ou medo no espectador e isso é grave em um filme que deveria ter esses ingredientes. Como é que o Kubrick consegue e você não, Flanagan?

Voltando a história, além do drama pessoal de Danny com seus traumas familiares, temos esse grupo de iluminados do mal chamado O Nó e que há milhares de anos descobriram que poderiam se alimentar da alma de outros iluminados para envelhecerem lentamente e atingirem uma semi-imortalidade. Entre novatos e veteranos, o mais velho vem da Roma dos gladiadores. E em dado momento, mesmo sem ter tuido contato com eles, Danny diz que essas pessoas são ricas e influentes. Entretanto o filme só os mostra vivendo isolados como uma gangue de criminosos e locomovendo-se em motor homes de luxo. Mas fora isso, em nenhum momento os vemos aproveitando suas tais riquezas ou suas vidas jovens eternas, apenas uma chatice sem fim de correr atrás de crianças para matá-las. Quem não iria querer esse vidão, hein? E é nesse ponto que entra a menina Abra Stone (a vibrante Kyliegh Curran), a criança mais iluminada de todas, com poderes muito superiores a de todos os outros. Com ela e a bruxa Rose (Rebecca Ferguson) temos as cenas mais visualmente interessantes do filme, onde Flanagan finalmente demonstra que tem uma pessoa criativa atrás das câmeras. Logicamente, os caminhos de Danny e Abra irão se cruzar e todos acabarão indo resolver seus conflitos pessoais e de vida e morte no fatídico hotel Overlook.      

Quanto ao título Doutor Sono, o filme leva esse nome porque, durante uma sequência não muito interessante no meio do filme, um idoso dá esse apelido a Danny Torrance. Talvez no livro essa sequência toda fosse mais relevante e ocupasse muitas páginas no livro, mas no filme, título e apelido não importam absolutamente nada na narrativa principal.

Enfim, se você é muito fã de O Iluminado e filmes de terror mais sofisticados, não espere muito desse filme além de uma tentativa caprichada da direção de arte em refazer os cenários do primeiro filme. Mas se você preferir filmes de terror com alguma ação, vilões estilo quadrinhos e protagonistas com poderes, esse filme vai te agradar. Na verdade, Doutor Sono poderia até ser um filme do Dr. Estranho se tivesse uma quantidade razoável de piadas.  

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Diretor, roteirista e blogueiro terráqueo. Dirigiu alguns curtas, uma minissérie e tem três blogs, um canal no You Tube, uma página no Facebook e projetos para 10 vidas.

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