Quem me conhece e/ou lê meus textos sabe que venho apontando a falta de ambição (temática) da Marvel há tempos. Às vezes, troca-se a ambição pelo mais puro e sincero entretenimento, o que é louvável, digno e, sobretudo, respeitável. Dos acertos, nasceram os adoráveis Guardiões da Galáxia de James Gunn. Dos erros, surgiram o primeiro Homem-Formiga e o segundo Thor.
Capitã Marvel não chega a se enquadrar exatamente como um erro (ao menos não do nível das produções supracitadas). Porém, quando se constrói uma história com a preocupação de preparar o terreno para outra e sem oferecer muito no meio do caminho, a coisa se complica. Nesse sentido, o projeto comete o mesmo equívoco do recente Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald e demonstra a mesma pressa do início do “Universo Cinematográfico Marvel”.
Ao lado de Geneva Robertson-Dworet (Tomb Raider – A Origem), os roteiristas e diretores Anna Boden e Ryan Fleck (Se Enlouquecer, Não se Apaixone) exibem um esforço notável para trazer frescor à consagrada estrutura de filme de origem, seja ao fragmentar a jornada de Carol Danvers (Brie Larson) ou ao revelar a origem de seus poderes somente na segunda metade de projeção, contrariando a vasta maioria de seus colegas de gênero.
Iniciando a projeção com Danvers sofrendo lapsos de memória e sendo resgatada pela tropa liderada por Yonn-Rogg (Jude Law), o roteiro acaba metendo os pés pelas mãos ao jogar muitas situações no colo do espectador. Num primeiro momento, temos a protagonista demonstrando seus poderes durante uma missão e rapidamente a vemos tentando resgatar um personagem importante para a solução de um conflito entre raças alienígenas. Enquanto isso, somos apresentados ao tal conflito ao mesmo tempo em que alguém esclarece um pouco sobre cada uma dessas raças. São muitas informações e pouco tempo para avançar ao próximo ato.
Porém, após o convoluto primeiro terço, o trem aos poucos volta aos trilhos e a trama deixa de lado a atmosfera de space opera para ganhar tons de buddy comedy dos anos 90, com o jovem Nick Fury de Samuel L. Jackson fazendo uma improvável parceria com a guerreira superpoderosa. Nesses momentos, a fórmula Marvel passa a se fazer notar e o tradicional humor do estúdio entra em cena mais para cumprir tabela do que para criar gags verdadeiramente memoráveis. Mas aqui o importante não é provocar gargalhadas, pois um mero sorriso já é o bastante para que o rótulo de “filme leve” seja confortavelmente atribuído. Afinal, tradição é tradição.
De volta à questão dos anos 90, em nenhum momento temos a real sensação de estarmos vivenciando um filme “noventista”. Atirar referências óbvias como fitas VHS ou uma imensa Blockbuster não basta. Claro, as cenas que brincam com a velocidade da internet (ainda primitiva na época) divertem, mas o sentimento que fica é o de que Capitã Marvel parece desesperadamente querer soar como algo vindo dos anos 90, como se a nostalgia fosse mais uma isca atirada aos espectadores mais velhos. Talvez a cena que melhor represente esse argumento seja aquela onde vemos um fliperama no centro do interior de uma nave alienígena (futurista, diga-se de passagem). Já a trilha sonora aproveita bem alguns nomes da época, com destaque para a utilização de “Come as You Are” do Nirvana, que cai como uma luva para uma sequência importante do terceiro ato.
E por falar em cair como uma luva, Carol Danvers e Brie Larson parecem ter sido concebidas uma para a outra. Trazendo personalidade e charme à heroína, Larson mostra-se confortável e não se intimida diante da oportunidade de protagonizar uma produção de escopo infinitamente maior. Vencedora do Oscar pelo sensível O Quarto de Jack, a atriz norte-americana, não tem dificuldades para estabelecer Carol Danvers como uma mulher forte e inteligente, daquelas que não abaixam a cabeça para ninguém, muito menos para os homens. Servindo de exemplo para uma geração inteira de meninas, a Capitã Marvel de Larson coloca-se em pé de igualdade com as figuras masculinas tão comumente retratadas como superiores nesse tipo de produção. Aliás, mesmo sendo claramente muito mais poderosa do que seus pares, é admirável perceber como a super-heroína jamais se coloca à frente, buscando apenas respeito suficiente para ser vista como igual.
Infelizmente, os roteiristas parecem ter se debruçado diante do evidente viés feminista e, preguiçosamente, não foram além, exemplificando o que escrevi no início desse texto. Além disso, se o celebrado Pantera Negra preenchia uma lacuna de representatividade que por muito tempo incomodou, Capitã Marvel chega atrasado numa época já marcada pelo impacto cultural de Mulher-Maravilha, um filme mais consciente de seu potencial empoderador e com um discurso muito mais forte. Não nos enganemos, a aventura de Diana Prince tinha o que dizer e sabia exatamente como fazê-lo, ao passo que Capitã Marvel apenas se conforma com a ideia de repetir os passos da colega.
Não estou dizendo que o filme erra em sua mensagem, ao contrário, apenas digo se tratar de algo sem o peso do ineditismo. Impactante mesmo, só um dos diálogos finais, quando a um homem, a protagonista declara com todas as letras não ter nada a provar, oferecendo a mão logo após salvar vários outros personagens masculinos. Os golpes de Carol Danvers ao final não são desferidos apenas em vilões de carne e osso, mas também àqueles metafóricos, representados por valores obsoletos, arcaicos e débeis como o machismo e, principalmente, aquela necessidade de se provar superior, seja através do discurso ou mesmo da força (física ou das atitudes). Mas vamos seguir para a parte técnica.
Como já era de se esperar de uma superprodução como essa, os efeitos visuais saltam aos olhos, o que, convenhamos, já deixou de ser algo minimamente surpreendente no atual mundo em que vivemos. Fazendo com que as sequências de ação apresentem-se como nada além do adequado, correto, num festival de cores e chroma-key com o selo Marvel de qualidade.
A aparição de algumas figuras conhecidas de títulos anteriores do estúdio certamente farão os fãs vibrarem, mas nada se compara ao prazer quase frívolo de ver a tecnologia rejuvenescer o grande Samuel L. Jackson, que aqui tem a oportunidade de humanizar o sempre sisudo Nick Fury, o que pode soar como descaracterização para alguns (e não discordo). Já Jude Law volta a atuar num blockbuster, empregando todo o seu talento para fazer de Yonn-Rogg um personagem relevante, mesmo que traído pela ideologia do texto. Carismático e intenso como de hábito, Law é sempre um elemento interessante em cena, despertando até certa frustração pelo espaço pequeno na história.
Por fim, é decepcionante constatar o trabalho genérico da compositora Pinar Toprak, ainda mais se levarmos em conta que Pantera Negra recebeu o Oscar de Melhor Trilha Sonora há menos de um mês. Também responsável pela trilha do jogo Fortnite, a turca recorre a acordes opacos para conceber o tema principal, alcançando resultados apenas medianos na trilha incidental, quando mescla sons eletrônicos a instrumentos tradicionais.
Sempre aprazível ao combinar uma atmosfera leve a um humor inofensivo, Capitã Marvel é mais uma daquelas aventuras módicas do Universo Marvel, um passo para trás justamente quando o estúdio parecia caminhar firmemente para frente. Longe da diversão e do ritmo impecável de Vingadores: Guerra Infinita ou da ressonância temática de Pantera Negra, Capitã Marvel tem tudo para ser esquecido em pouco mais de dois meses, quando Vingadores: Ultimato finalmente chegar às telonas.
Obs: Obviamente, há duas cenas adicionais.
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