Inicia a sessão do filme e uma certeza: escutar Queen arrepia e ainda mais no cinema. Escutamos “Bohemian Rhapsody” com suas primeiras notas no piano e se cria uma expectativa do que virá pela frente nas telas, pois não é uma tarefa fácil falar de uma lenda.
Ao fim do filme saímos com aquela sensação de que a banda Queen será eternamente emblemática e “fodástica “e eles em conjunto são inesquecíveis, mas a banda não seria tão insana e ousada se não fosse o provocativo líder Freddie Mercury.
Para termos ideia o nascimento deste filme demorou muito (10 anos de produção e rodado entre 2017 e 2018) passando por inúmeras polêmicas e divergências artísticas. Integrantes da banda chamaram o diretor Bryan Singer (“Os Suspeitos “e X-Men) na direção e quem interpretaria Freddie seria o ator Sacha Baron Cohen. O ator teve divergências artísticas, saiu do filme e o diretor por desentendimento e faltas foi retirado da direção (além de suspeito de assédio). No lugar entra o diretor Dexter Fletcher (“Voando Alto) acompanhado de um novo roteirista (Anthony Mccarten) e da escolha final e certeira de Rami Malek (Mr. Robot) para interpretar o icônico vocalista.
A música mais conhecida do grupo e que dá nome ao filme retrata a trajetória do Queen (nome criado e batizado por Mercury) dos anos 70 até 90 e a rápida ascensão de Mercury.
Uma banda geralmente surge de um encontro louco e uma vontade insana de desbravar o mundo. Na década de 70 Roger Taylor e Brian May tinham um grupo chamado “Smile” e por ironia um fã: Freddie Mercury. A saída repentina do vocalista (Tim Staffell) foi a oportunidade de Mercury entrar na banda. Mesmo que o grupo tenha estranhado os dentes do novo vocalista acreditando que isto era um impedimento para o sucesso da banda ficariam embasbacados com a potencialidade vocal e presença cênica de Freddie.
Falando em dentes essa seria uma marca registrada de Mercury que tinha 4 dentes extras e os dentes traseiros empurravam os da frente e davam um visual estranho. Os dentes o enfeiavam e davam a sensação que ele era seguro de si e sabia jogar com isso.
O ator que o interpreta disse numa entrevista que se sentia nu sem a prótese e que ela o ajudou fortemente na construção do personagem (que o deixava inseguro e o fazia chegar numa postura de força que o personagem pedia) e o considerou tão importante que após o fim das gravações banhou a prótese dentária em ouro.
Além da banda; Freddie se dividia com o amor que vivia com Mary Austin interpretada de forma muito sincera por Lucy Bointon. Talvez algumas pessoas desconheçam que Mercury tinha um relacionamento de anos com uma mulher e chegou a noivar. Após muitas turnês o amor foi enfraquecendo e a entrada de Paul Prenter na vida de Freddie muda tudo. Paul era gay assumido e virou com tempo amante e futuramente empresário do protagonista.
De repente você vê Freddie completamente diferente no visual, o ego inflado, com atitudes arrogantes, atrasos permanentes, drogas e festas e um distanciamento da banda, família e Mary que geram inúmeras crises. Vemos o artista se sentindo sujo como ele próprio se define e rodeado por moscas na merda. Paul só foi positivamente interessante na modernização que trouxe para a banda, a inserção de músicas nas boates gays e no empurrão para o cantor assumir homossexualidade (o que não fica tão explícito no filme e fica subentendido em vários momentos).
Não sei se o Queen teve sucesso tão rápido (no roteiro sim), mas é assustadoramente veloz a alavancada na carreira. De uma banda “Smille” que passa para “Queen”, eles vendem sua Kombi e juntam dinheiro para gravar seu primeiro disco. São descobertos por sua ousadia, fusão de gêneros e por sempre baterem na mesma tecla: cada disco deveria ser diferente e eles não gostavam de se acostumar com o comum.
É uma reviravolta ver um garoto que se chamava Farrokh Bulsara, de origem indiana, criado por pais de etnia persa tendo sua vida mudada radicalmente e até o seu nome mudou em cartório para o nome artístico. Freddie sentia que estava no lugar errado, morando numa casa que se sentia reprimido e que ele nasceu para ser uma estrela. O público tinha uma conexão surreal com ele e como todo artista sofria de crises de solidão e era considerado muito fechado e solitário mesmo que amado por tantos e rodeado de pessoas que ele não sabia discernir se eram seus amigos. Sua verdadeira família era a banda, seu amor Mary e seus parentes, mas a personalidade fechada o fazia não ver as coisas.
Não sei se parece clichê do roteiro ou se de fato aconteceu, mas Mercury só muda e caem as fichas com a vinda do HIV em sua vida. Ele foi um dos primeiros artistas conhecido a contrariar o vírus e hoje ele possui uma instituição que cuida de pacientes com o vírus.
Como vemos diante das telas o cantor tinha um lado sensível, mas ficava escuro ao constatar que se tornou uma “prostituta musical “como ele se definia e a vida dele e da banda uma sucessão de discos e turnês sem intervalos, tendo como esgotamento emocional de ambos. Mas o roteiro de Mccarten já tão conhecido e premiado por roteiros de histórias biográficas (“A Teoria de tudo “) não consegue sair muito da mesmice de filmes de biografia musical e fica num lance contido e burocrático que não combina com a personalidade de Freddie. Tanto que o roteiro não chega na morte do ícone e o diretor com as roteiristas não chegam a nada novo cinematograficamente.
O filme é uma sucessão de músicas e músicas misturada a dramas e aquelas cenas de show com o ano estampado na tela. Já virou mesmice, não? Mas como ousar num filme biográfico, como respeitar os familiares e agradar aos fãs?
Fletcher não teria ficado contido juntamente aos roteiristas por terem que passar tudo pelo aval dos produtores (que são da banda) e pelo projeto ter passado por inúmeros problemas de troca de elenco, direção, roteiro e divergências estéticas? Até porque o filme ficou produzido até um tempo pelo ex. diretor. A impressão que passa que o filme poderia ser mais e acompanhar a ousadia de Mercury e algo não flui. É um filme que tem controle e um artista tão intenso não combina com isso.
Se formos analisar a música tema (Bohemian) é uma mistura de pop, balada do piano, rock, ópera e a ousadia para época de 6 min. de música (que era impossível de ser tocada na íntegra nas rádios). A música era inovadora e ousada, de difícil aceitação e até diferente de tudo que o Queen estava fazendo. Poderia ser um tiro no pé, mas foi um dos momentos que consagrou a banda um fenômeno do século XX. A música nunca foi explicada pela banda e pelo vocalista, mas correm boatos que falam da vida pessoal de Freddie e a letra contém uma ida para o buraco e o pedido de socorro que o filme não cavuca a ferida.
A crítica caiu em cima do filme e a polêmica cai sobre a homossexualidade velada do protagonista e não aprofundamento sobre o momento que a AIDS entra em sua vida. É assustador saber que após descobrir o vírus ele decide ir atrás de Tim Junto (um garçom que conheceu numa festa) e seria seu mais novo amor e a pessoa que ficou ao seu lado até morrer. Este personagem e a relação se passam em duas cenas e acredito que deveria haver um foco maior e passa batido.
Mas ao vermos cenas em que os personagens da banda são retratados (corretos, tradicionais, heterossexuais e casados) fica claro que os produtores realmente queriam algo família e que não “denegrisse “a imagem da lenda.
O filme evita riscos diferente de um artista que sempre se expôs e lutou contra a xenofobia e homofobia falta uma ousadia na obra de se deixar bater na cara e ir mais a fundo e não de forma rasa. Mas o filme é ruim? Não! Vale muito pela atuação e pelo personagem.
Os acertos do filme são as inserções musicais nos momentos certeiros, a forma que o tema do filme vai sendo construído no filme causando uma das partes mais emotivas, a interpretação de Rami que é um forte candidato a indicação de Melhor ator no Oscar, a caracterização e figurinos também são ponto forte e serão lembrados nestas categorias pela academia.
A banda formada por Bryan May, Roger Taylor e John Deacon interpretados por Gwilym Lee, Ben Harry e Joe Mazzello são encenados de forma correta e sem grandes destaques e apenas uma base para a grande atuação de Rami. A humanidade e generosidade que ele chega ao final do filme é apaixonante.
A direção consegue uma cena primorosa com o show histórico do Queen no Live Aid (1985) em Wembley onde toda a renda seria distribuída para as crianças com fome na África. O estádio lotado, uma sucessão de grandes estrelas da música participando e esta seria uma apresentação de retorno da banda após uma crise e Mercury já estava com o vírus HIV. O interessante é que construíram num estádio essa cena com figurantes e por ironia foi a primeira cena que Rami gravou. Ele incorpora Freddie e mesmo dublando (voz do cantor mesclado com um imitador) ele convence que canta, tem excelência no gestual e nos propõe uma cena emocionante mesmo que possamos ver no YouTube a original.
Chama atenção a sintonia e sensibilidade que Rami e Lucy tem nas telas e suas cenas levam as lágrimas tamanha sinceridade nem sempre um amor duro pra sempre como podemos ver na letra de “Love of my life” que dedicou para Mary. Freddie acreditava que mesmo com as “escapadas” ela estaria para sempre o esperando, mesmo após revelar que era bissexual e que Mary diz: “não, você é gay”.
Curioso que após separação ele compra uma casa enorme para ex mulher ao lado da sua onde poderia vê-la da janela e ele sempre a teria por perto. Era um jogo triste e que pode emocionar alguns espectadores.
Prometo não fazer spoiler, mas para os fãs há erros na ordem temporal de shows que podem não ser perdoados e alguns podem achar Rami caricato. Eu discordaria deste ponto, pois Mercury era performático, teatral e criou um personagem que Rami agarra com tudo.
Duvido que o filme não desperte interesse e expectativa num ano que considero fraquíssimo do cinema. Vá pelas músicas, pela celebração e a tentativa de homenagem e que bom que Freddie Mercury passou pelo mundo.
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