Na pequena cidade de Bacurau, sertão brasileiro, o velório de dona Carmelita, reúne toda a população e traz de volta àquelas terras alguns moradores. Porém, alguns dias depois coisas estranhas começam acontecer e ameaçam a tranquilidade da cidade. Mas esse povoado guarda segredos maiores que sua ameaça.
Para os apaixonados por cinema ficam claras as referências colocadas ao longo do filme aos estilos faroeste e terror gore. Nos cortes de cena, nos zooms, closes, no trabalho de cores, na fotografia e até mesmo em partes da trilha sonora. O uso de lentes americanas Panavision, típicas no cinema de Hollywood, também ajudam a trazer aos nossos olhos aquela sensação de uma imagem comum aos nossos olhos – já que o estilo de filmagem do cinema nacional muitas vezes no remete as produções de novelas ou séries para TV.
Ainda assim, mesmo com tudo isso, acredito ser uma das produções brasileiras que mais faz um enaltecimento de nossa própria cultura. Pode utilizar sim de técnicas criadas (ou mais divulgadas) no exterior, mas tudo com o intuito de valorizar nossa história e folclore.
E quer lugar melhor para cenas dignas de filmes de Sergio Leone ou John Ford do que o sertão brasileiro? A fotografia é impecável, trazendo panorâmicas muito bem trabalhadas e que engrandecem as paisagens brasileiras.
No outro ponto levantado, do terror gore, temos o jogo de cores e um trabalho de som e trilha sonora que remetem muito ao trabalho de John Carpenter. O exagero de violência e sangue também ajudam nesta linha. Inclusive, atenção às cenas finais de Lunga – um tanto “Tarantinesco”.
O que é de arrepiar, e já disse antes e volto a dizer, é ver tudo isso em prol da cultura brasileira. Ver, logo na abertura, uma cena do espaço se voltando para o mundo até chegar em Bacurau ao som de“Não Identificado” de Caetano Veloso é tão impactante quanto “Hoje” de Taiguara na abertura de “Aquarius”. Detalhe, durante a coletiva Kleber Mendonça Filho contou que a ideia era abrir com a música “Night” de John Carpenter, mas acharam que como o filme já começa com uma cena muito industrial (e o efeito especial mais caro da produção) e se trata de uma produção brasileira seria mais interessante ter o choque de informações – que traria um efeito muito mais forte no espectador.
E assim a trama vai intercalando músicas nacionais com internacionais e construindo uma definição da nossa identidade, também temos clássicos como “Requiem para Matraga” de Geraldo Vandré e a própria Night é utilizada em outra cena. E para ajudar, se “Era Uma Vez no Oeste” temos Charles Bronson fazendo a trilha no meio da cena com sua gaita, em Bacurau temos um senhor fazendo repente com sua viola.
Já em relação ao elenco precisamos dividir em dois grupos: os brasileiros e os gringos. Mas devemos deixar algo claro, nenhum deles é o destaque, o protagonista da trama é a cidade de Bacurau.
O elenco nacional conta com estrelas já conhecidas. Ainda que em um papel quase secundário, Sonia Braga já mostra a que veio nas primeiras cenas do filme. Barbara Colen parece logo no início que vai tomar para si um protagonismo, mas não. Ainda assim ela e Thomas Aquino constroem uma boa dupla e trazem bagagens diferentes em seus personagens para essa troca. Silvero Pereira como Lunga faz um anti-herói completo, forte, destemido e de certa forma com valores memso aprecendo quase no final do filme. Wilson Rabelo é o arrimo da cidade, o professor e filho de dona Carmelita, passa sabedoria em cada olhar. Thardelly Lima é aquele prefeito conorelista que traz para o filme um pouco do humor típico do nordeste. E Karine Teles e Antonio Saboia são os sulistas arrogantes que amamos odiar em cada detalhe.
Já quanto ao elenco gringo tenho um único parecer, mas antes gostaria de listar os atores. Udo Kier, Chris Doubek, Alli Willow, Jonny Mars, Brian Townes e Julia Marie Peterson. Todos eles sem tirar nenhum detalhe trabalham profundamente no papel do estrangeiro que vê os sulamericanos como animais e não pessoas, o preconceito está enraizado em cada fala e olhar, além de trazerem à tona muito bem a paixão por armas e a fetichização entorno do diferente.
Esse filme é uma ode ao cinema como um todo, mas principalmente ao cinema nacional e à cultura brasileira. E atenção a uma mensagem nos créditos finais.
E a trama de Bacurau? É tão politizada assim?
Tentarei não entregar muito sobre o enredo. Mas o próprio trailer já mostra um grupo de americanos que estão no Brasil e atacam a cidade. Antes de qualquer análise política sobre a ótica do atual governo brasileiro, o filme deve ser visto sob uma ótica mundial.
O enfoque principal da trama parece mais ser a xenofobia e o poder de um povo de lutar juntos contra isso. Dos americanos com os brasileiros de forma geral e, dentro do Brasil, dos sulistas com os nordestinos.
No todo, a história parece mais enaltecer o povo brasileiro como unidade, sua cultura, seu folclore e suas origens do que querer atacar um ou outro. Como o próprio Kleber Mendonça Filho disse durante a coletiva de imprensa, o projeto começou em 2009 e não tinham como prever como o país estaria ou não quando fosse lançado. Antes de querer ler o filme colocando símbolos ou significados é importante entender que cada um quando assiste tira suas próprias conclusões pois é isso que a arte se propõe: fazer pensar. A atriz Karine Teles, ainda nesse tema, disse: “a crítica está na gente e a gente que se apóia no que está vendo pra reafirmar uma sensação de perder direitos”.
Durante toda a coletiva choveram perguntas sobre as relações do filme com o governo atual. Os únicos pontos mais críticos levantados foram da produtora Emilie Lesclaux que disse saber de alguns projetos com temática LGBT que estão sendo barrados e que não saberia dizer se Bacurau seria barrado, caso fosse proposto atualmente.
Também o ator Thardelly Lima comentou de que vem recebendo fichas de inscrições com perguntas se o projeto faz apologia a sexo, drogas e nudez e que, ao jogar isso no grupo do filme recebeu a resposta do diretor de que era fácil resolver, só responder não a tudo. Kleber também brincou: “não sei porque se está discutindo censura, não há censura, a constituição garante”.
Por fim, Silvero Pereira trouxe pontos conclusivos à discussão:
“É muito importante q tenhamos consciência de não responsabilizar a arte por uma transformação, nós artistas temos a função de questionar, provocar e toda construção que a gente faz numa obra como essa, por exemplo, é um sistema que vem desses órgãos – que somos cada um com suas funções e com suas referencias”.
E sobre a violência e reação dos moradores da cidade mostrados no filme:
“O que se espera de alguém que é tratado a violência, o que se espera de alguém que todo dia é tratado a paulada e a grito, a empurrões? se espera que a resposta seja essa pois ela foi educada dessa forma”.
O que podemos concluir das sempre polêmicas produções de Kleber Mendonça Filho é que elas propõem o questionamento e provocam ao pensamento, não relacionados a um ou outro governante, mas sobre o status quo.
Com certeza é a melhor possível aposta do Brasil no Oscar em anos.
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