Responsável pelo impactante 12 Anos de Escravidão, o cineasta britânico Steve McQueen volta a abordar o racismo em As Viúvas e, pela primeira vez em sua carreira,  não se concentra em apenas uma questão. ViúvasTambém abordando temas espinhosos como o feminismo e a violência policial (principalmente contra negros), McQueen constrói uma obra sólida e carregada de significados.

Famosa pelo roteiro adaptado de seu próprio livro (Garota Exemplar), Gillian Flynn dessa vez faz o caminho oposto, adaptando o romance literário de Lynda La Plante ao lado de Steve McQueen. Assim como fez em Garota Exemplar, Flynn é hábil na construção do cinema de aparências, como se montasse um cerco apenas pelo prazer de destruí-lo logo em seguida. Nesse caso, As Viúvas acompanha um grupo de mulheres que resolve agir por conta própria depois que seus respectivos maridos morrem durante um assalto a um perigoso criminoso.

Misturando política, religião e criminalidade através do clássico desejo pelo poder, Flynn e McQueen criam um retrato corrosivo do sistema, onde o dinheiro é mais forte do que a moral, o grande fio condutor de carreiras, sejam elas criminosas ou legais. Aliás, a linha tênue que separa uma conduta política do mero exercício de uma atividade criminosa, é pano de fundo para debater a hipocrisia daqueles que enxergam o povo apenas como um rebanho a ser dominado. Seja um pastor ou um político, a lógica é a mesma, assim como o resultado final que invariavelmente passa pelo poder.

Nesse mundo frio e calculista, sobram críticas afiadas à facilidade com que é possível adquirir armas nos Estados Unidos e à latente violência policial, muitas vezes travestida de repressão a negros e que é traduzida com perfeição numa sequência envolvendo um jovem afroamericano que descobre uma arma no porta-luvas do carro de seu pai. Nesse amálgama de denúncias, sobra espaço ainda para um comentário sobre o pensamento ultrapassado da velha política conservadora, onde o ódio enraizado na estupidez é materializado em falas como “lutamos contra quem entra ilegal no nosso amado país” ou ainda “somos contra aqueles que não param de ter filhos”, ditas com asco por um inspirado Robert Duvall.

Entretanto, o tema mais discutido em As Viúvas é mesmo o feminismo, que toma um espaço precioso da narrativa escancarando situações que infelizmente são corriqueiras. Mesmo que insistindo em mantras óbvios (“eu vou aonde quero”, “eu posso ganhar meu próprio dinheiro” e afins), o roteiro é especialmente eficaz ao ilustrar o universo de cada personagem do grupo, destacando-se o arco dramático de Alice (Elizabeth Debicki, de O Agente da U.N.C.L.E.) que inicia a projeção como dona de um rosto marcado pelos golpes de seu marido abusivo e gradativamente toma as rédeas de sua vida até finalmente dar a volta por cima, como na cena em que, ao levar um tapa no rosto, decide revidar.

Debicki, por sinal, é a única com um arco bem delineado, pois mesmo que Viola Davis seja sempre uma intérprete interessante, sua Veronica Rawlings converte-se abruptamente numa figura de liderança, uma mudança repentina de tom que só não a ofusca graças ao talento ímpar de Davis, uma atriz substancialmente superior à Debicki. Já Michelle Rodriguez (Velozes e Furiosos) acaba subaproveitada, enquanto a novata Cynthia Erivo rouba a cena como uma cabeleireira/babá que não se intimida diante do gangue recém-formada.

Tecnicamente competente, o filme também se beneficia do bom olhar estético de Steve McQueen, que capta a ação sempre de muito perto, colocando o espetador praticamente ao lado dos personagens, como na ótima sequência de perseguição durante o prólogo, onde ao invés de acompanharmos tudo à distância, com ampla cobertura externa, somos convidados ao interior de uma van, experimentando toda a tensão daqueles personagens enquanto são alvejados. Isso claro, é potencializado pela ótima montagem de Joe Walker (A Chegada) que jamais perde o controle do ritmo da narrativa, mesmo com uma duração de 129 minutos.

E já que mencionei o ritmo, vale ressaltar a importância da trilha sonora do grande Hans Zimmer (Dunkirk), responsável por uma atmosfera de tensão palpável graças a uma composição que opta por tons eletrônicos intermitentes. Contribuindo para essa densidade, a direção de Steve McQueen revela-se crua e soturna, com planos sempre em movimento, mas sem arroubos estilísticos, corroborando os tons escuros da fotografia de Sean Bobbitt, que aproveita bem as locações noturnas para fazer o contraste com a iluminação ocasional proveniente dos tiros disparados.

Recheando a história com uma boa parcela de reviravoltas, As Viúvas é um daqueles casos raros de união entre virtuosismo artístico e valores de produção, numa espécie de crowd pleasure onde o espetáculo é oferecido com requinte técnico e altas doses de sofisticação. E se o final peca ao acatar convenções, isso jamais é o bastante para enfraquecer uma história tão rica e tristemente contemporânea em suas discussões.

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Crítico de Cinema e Carioca. Apaixonado pela Sétima Arte, mas também aprecia uma boa música, faz maratona de séries, devora livros, e acompanha futebol. Meryl Streep e Arroz são paixões à parte...

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