Em determinada cena de A Vida Invisível, a proprietária de um cortiço pergunta para a inquilina o gênero do bebê que acabou de nascer. Ela responde “menino” e a mulher comenta: “Esse teve sorte.”
Esse breve diálogo resume a temática principal do sétimo longa de ficção De Karim Aïnouz, consagrado diretor de Madame Satã (2002) e Praia do Futuro (2014). Baseado na obra A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Marta Batalha, o título foi abreviado para melhor fazer justiça a história das duas protagonistas, Eurídice (Carol Duarte) e sua irmã mais nova, Guida (Julia Stockler). Amigas e cúmplices na vida, as duas irmãs já são quase adultas no Rio de Janeiro de 1951, quando a mais nova se apaixona por um marinheiro grego e foge para a Grécia para viver um grande amor. Fica a mais velha, Eurídice, que os pais logo arranjam de casar com Antenor (Gregório Duvivier). Eurídice não é passional como a irmã e tem sua vida planejada: não vai ter filhos tão cedo porque pretende estudar música em Viena para se tornar uma grande pianista clássica.
Mas esses sãos os anos 50, e se motivos econômicos não são empecilho para a realização dos sonhos das protagonistas, a sociedade machista e patriarcal é. Ao longo do filme, tratado por Aïnouz como um melodrama tropical com tons realistas demais, Eurídice e Guida descobrirão, como a proprietária do cortiço, que ser mulher na sociedade brasileira de então é não ser dona de seu destino, é não ter voz, é ser, como já diz o título, invisível. E em muitos bolsões sociais e religiosos de hoje, a situação pouco mudou para dezenas de milhões de brasileiras.
A direção de arte, enriquecida por uma fotografia sóbria e granulada, dá ao Rio de Janeiro da época um tom esmaecido, quase claustrofóbico, nada solar. A única cena de praia é na cena de abertura, momento em que se anuncia uma tempestade, prenúncio das pequenas tragédias pessoais que irão se abater sobre as duas irmãs.
As duas atrizes principais, Stockler e Duarte, exibem uma jovialidade e entusiasmo inicial que vai se transformando aos poucos em dureza, tristeza e desamparo. Perfomances fascinantes que por si só já justificam sua ida ao cinema. E quando saem essas duas futuras grandes atrizes de cena, entra Fernanda Montenegro, que com seu olhar e sua arte forjada em décadas de dedicação ao teatro e ao cinema, faz cair as defesas emocionais de qualquer espectador. Não é a toa que uma figura patética e invejosa como Ricardo Alvim, o novo Secretário da Cultura do governo Bolsonaro, a chamou de sórdida por protestar contra a “guerra cultural” que Alvim promove contra os artistas brasileiros. Ele sabe que um único dedo dela tem mais talento e reconhecimento do que ele jamais terá em toda sua vida.
Já sobre a indicação para o Oscar ao invés de Bacurau, dadas as escolhas anteriores dos indicados, o filme não tem muitas chances, mas espera-se que a academia olhe com bons olhos uma possível indicação de Montenegro como atriz coadjuvante. Sendo o Oscar uma premiação mais política do que artística em muitos momentos e dada a presente conjuntura política atual de ódio e censura ao cinema nacional, existe alguma chance disso acontecer. Embora pese contra o fato de que, para a indústria cinematográfica americana, sempre é bom que a produção nacional de qualquer outro país seja colocada de joelhos. E o governo atual segue trabalhando firmemente nesse sentido.
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