Seria somente Eurídice a única mulher com uma vida invisível ou muitas de nós nos anulamos com o tempo?
Entrar no novo filme de Karim Aïnouz (“Madame Satã” e “Praia do Futuro”) é mergulhar numa tristeza e sair com os olhos tomados por lágrimas. Um filme que é puro sentimento e sentimentalismo e talvez não atinja um grande público, mesmo com o apelo de que temos neste filme a melhor atriz do Brasil; Fernanda Montenegro (que neste momento recebe duras criticas e um desrespeito espantoso daqueles que são ignorantes diante de uma atriz/mulher que se posiciona politicamente e artisticamente engajada).
Já adianto que se o espectador pretende conferir esta obra para comparar com “Bacurau” do ótimo diretor Kleber Mendonça Filho já começa errado. Entendemos as escolhas da Academia e o que poderia ser mais interessante para nos representar no Oscar. São filmes com temáticas distintas, com assuntos de extrema urgência a serem discutidos e serem vistos, mas que cabe ao gosto do público para afirmar que “A Vida Invisível” merece estar nos representando.
Veremos diante das telas literatura sendo transposta em imagens. Imagens belíssimas e momentos sensoriais que você consegue sentir o calor escaldante do Rio de Janeiros nas gotas de suor no corpo dos atores ou na respiração angustiada que prende um grito por liberdade.
Esse filme fala da mulher e percebo Eurídice e Guida dialogando comigo e com todas mulheres da minha árvore genealógica e mulheres que são presentes ou agora são ausentes na minha vida. Estamos num péssimo momento para as mulheres, mas quando estivemos bem? Aqui teremos as mulheres do século 20 diante dos nossos olhos e que saiu do romance “A vida invisível de Eurídice Gusmão” de Martha Batalha (seu primeiro romance da escritora pernambucana). Mulheres que são o arrimo da família e que deixam o lado profissional e um punhado de sonhos para se dedicar aos filhos, marido e ao correto.
Este filme conta a história de duas irmãs Eurídice (18 anos) e a irmã mais velha Guida. Duas irmãs fortemente ligadas, como se num momento a corda de uma arrebentasse uma delas morreria de dor. Duas mulheres contemplando o mar do Rio de Janeiro, jogadas diante daquela natureza tropical e perdidas como bichos no meio do mato. Guida grita pela irmã que parece que sempre de alguma forma a perdeu ou iria perder.
Não estamos acostumados quanto a público assistir filmes melodramáticos, onde a dor pulsa, tudo parece exagero e as situações poderiam ser contornadas de uma forma mais rápida. Mas tenha certeza que você não sairá do filme do jeito que entrou. Ali as coisas doem. Doem principalmente nas esperas, nas dúvidas, inseguranças e as cartas que não chegam. Não chegam nas mãos certas.
Karim adaptou o livro e no roteiro tem participação de Murilo Hauser e Inés Bartagaray e o próprio diretor admite que em sua adaptação foi “mais” cruel com as vidas imaginadas de suas personagens.
Guida interpretada com maestria e beleza pela atriz Julia Stockler. Uma mulher que tem ímpeto e vontade nos olhos e corpo. Ela é um bicho que não consegue ser enclausurado. Essa vontade de ser livre, viver um amor e conhecer o mundo é o pontapé para o desenrolar da trama. Duas irmãs se separam. Fica Eurídice.
Agora o objetivo é como ambas podem se reencontrar, pois a vida impedirá muitas vezes este encontro.
No meio dessa vontade dolorosa de reencontrar o laço afetivo familiar vemos diante da tela do cinema a maternidade retratada de uma forma angustiante e não feliz, os conflitos com o patriarcado e a mulher moldada para o casamento e para satisfazer seu companheiro. Na jornada das irmãs, vemos como o destino das duas é modificado bruscamente, nunca permitindo que as conexões de suas almas se percam, mesmo após a separação.
O grande alívio em ver cenas que chegam a serem tristíssimas para uma mulher é saber que desde 1950 tivemos e estamos tendo muitas mudanças e somos extremamente mais fortes atualmente.
Eurídice, interpretada pela atriz Carol Duarte busca nas teclas do piano o sonho único e poderoso de ser algo além do que a sociedade lhe coloca e ser uma grande pianista na Europa. E Guida, uma alma que bate com o peito estufado sobre a sociedade e busca o amor. Mas é errado amar sem casar, é errado ser mãe solteira, errado trabalhar em trabalho que é determinado apenas para homens e errado usar nosso corpo como queremos.
Você nunca deve confiar num marinheiro amor de passagem e Guida retorna para o Rio de Janeiro. Retorna para uma casa onde já não é tratada como filha, mas como algo sujo pelo pai conservador e duro Manuel (Antonio Fonseca) que não permite o retorno da filha “suja”, expulsa a jovem, e cria a história de que a irmã de Guida está na Europa, sendo uma grande pianista. Euridíce está no Brasil e casada com Antenor (Gregório Duvivier).
Teremos uma sequência de não vozes e silenciadas: A mãe , a filha, a irmã, a mulher negra. Todas são invisíveis perante o homem. Não há escolhas, desejos e sonhos.
Além do trabalho de direção de atores que pra mim é o ponto alto do filme, a escolha perfeita do elenco, se destaca também a direção de fotografia da francesa Hélène Louvart . Absurdamente deslumbrante que lembra em muito as obras de Karim como “Madame Satã” e as cores fortes, vibrantes e que lembram um cabaret. A fotografia é uma frame melancólico.
A maravilhosa atriz Fernanda Montenegro que interpreta Eurídice na terceira idade cita o filme como “vaginal” e “uterino”. Sim! Você sente as dores de um parto, de deixar os filhos, de não querer filhos, de desejar que seu corpo não seja usado apenas como algo selvagem, mas como algo respeitoso e que merece afeto. É degradante cenas de sexo no filme (nos quais o diretor teve a sensibilidade de deixar raras pessoas no set de filmagem), pois as personagens mais parecem bonecas borradas de maquiagem com uma expressão triste.
Cenas como de Carol Duarte com o excelente Gregório Duvivier ( que surpreende no drama, mesma com sua cara empática) nos faz pensar no quanto o machismo é tóxico . Já diria que invisível é tudo aquilo que não pode ser visto. Talvez alguns homens não consigam ver o óbvio: mulheres são gigantes.
Esta obra é um grito sobre o patriarcado e que celebra as mulheres e sua resistência. O elenco feminino desta vida é de dar entusiasmo para qualquer atriz e a necessidade de vermos mais histórias sobre o feminino nas telas e porque não protagonistas mulheres.
Destaco um dos trabalhos mais tocantes que já vi no cinema: Barbara Santos. Não me espanto nas pesquisas no Google e coletivas de imprensa seu nome não ser citado. É uma atriz negra. E uma das interpretações mais atravessadoras que presenciei. Queremos uma Filomena como amiga, mãe e querer que Filomenas não morram e sumam de nossas vidas. Filomenas são aquelas mulheres que perpassam nosso novelo e nos ensinam que mesmo com sofrimento se pode sorrir com uma casa com risos de crianças ao fundo. Barbara Santos está fantástica e merece destaque.
Ela é uma destas grandes atrizes como Fernanda Montenegro que nos traz uma Eurídice que vemos dentro do olho da atriz. Montenegro é umas das melhores atrizes para ler uma carta e quando ela lê, algo para e seu coração diminui.
A sua Euridice é aquela que queremos abraçar na cadeira vermelha, que gostaríamos de ter entregue todas cartas que o destino não deixou e que a dor não fizesse colocar fogo no sonho piano. O mais bonito é ver que ela ultrapassou tudo com dignidade. Uma dignidade que só uma Fernanda consegue nos sensibilizar e ao fim do filme seu corpo fica preso na cadeira com o fado de Amália Rodrigues.
As vidas invisíveis devem ser observadas com ternura e este filme merece uma possível indicação otimista para Fernanda Montenegro como atriz coadjuvante e a fotografia magistral que temos registrada.
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