Philip Seymour Hoffman.
Seu talento não o colocou apenas entre os grandes atores da sua geração, mas entre os grandes atores da história do cinema. Seu último trabalho como protagonista foi O Homem Mais Procurado e, com a extraordinária interpretação do personagem Günther Bachmann, Hoffman se despede com chave de ouro. E não há como evitar a tristeza ao final do filme, quando cai a ficha de que não veremos novos trabalhos com esse gigante (a não ser nas sequências de Jogos Vorazes, claro, mas é um personagem que já conhecemos).
O filme é uma obra prima, como veremos no detalhe ao longo deste texto. Escrito por Andrew Bovell a partir do livro homônimo de John le Carré, o filme de Anton Corbijn conta a história de Günther, um espião alemão que busca desmantelar uma rede de filantropia responsável por desviar recursos financeiros a grupos terroristas islâmicos. Sempre às sombras e agindo de forma não oficial, Günther e sua equipe encontram dificuldades com órgãos oficiais dos governos alemão e estadunidense que, apesar de compartilharem os objetivos, não são alinhados aos meios, o que transforma o filme em uma sequência de reviravoltas de espionagem e contra-espionagem de tirar o fôlego em muitos momentos. E dessa forma, o engenhoso roteiro de Bovell parece fazer com que todos os personagem sejam vítimas de uma cadeia alimentar onde sempre há um peixe maior atraído por peixes menores, uma metáfora usada na narrativa de forma brilhante se o espectador captar exatamente o que ela significa dentro desse universo conspiratório. O protagonista então investiga Issa Karpov (Grigoriy Dobrygin), um muçulmano com um misterioso passado, que, com ajuda da advogada Annabel (Rachel McAdams), busca resgatar a herança do pai depositada em um banco do magnata Thomas Brue (Willem Dafoe).
Para atingir esse resultado no aspecto visual, a direção de arte de Sabine Engelberg se faz notar com tanta eficácia que, aliada à cinematografia de Benoît Delhomme, é possível dedicar um texto inteiro apenas para destacar cada decisão acertada no uso das cores dos cenários e figurinos, pois através de detalhes às vezes sutis percebemos a evolução da narrativa, pontos de virada e rimas visuais. Delhomme escolhe cores primárias, ora chapadas, ora envelhecidas, para a primeira metade do filme. Assim, vemos as composições de cenário em cores dessaturadas em uma Hamburgo sob investigação do protagonista em contraste com cenários de amarelo chapado e metal reluzente nas partições do governo. E quando há uma brusca virada que altera o equilíbrio minuciosamente construído durante o primeiro ato, vemos pela primeira vez as cores roxas e verdes que acompanharão o arco do personagem Issa, até então retratado em um figurino azul claro (que por sua vez remete ao mesmo tom de uma prisão onde outra personagem passará um tempo e em elementos na residência do banqueiro). Não por acaso, seguindo essa mesma lógica, veremos o desequilíbrio quando Günther surge com uma gravata roxa ou, em outro momento, com uma camisa laranja. Ainda que pareça tomar controle da situação, através da observação das cores é possível prever que as coisas não estão no controle quanto parecem, sem que isso atrapalhe o desfecho surpreendente da narrativa. Não é só isso. O uso do vermelho para evidenciar o perigo que os personagens enfrentam é também digno de nota, por exemplo, quando Annabel sai de um ambiente caminhando sobre um tapete vermelho, volta para casa pedalando e então Corbijn posiciona a câmera de modo que vemos uma pequena luz vermelha na traseira de sua bicicleta junto com luzes da mesma cor nos estabelecimentos comerciais, como se a garota estivesse envolvida pelo perigo a partir dali.
E por falar no posicionamento de câmera, Corbijn é seguro o tempo inteiro, a começar pelos planos fechados e claustrofóbicos quando apresenta os personagens no começo da narrativa de forma tensa, bem como planos que acentuam o que disse no parágrafo anterior, que chega ao detalhe de registrar um traveling onde vemos as árvores com folhagem verde e laranja, que demonstra a distância daquele momento para o início do filme tanto na opção da câmera como mais uma vez no uso das cores secundárias.
Todo elenco se sai muito bem e ninguém fica à sombra do excelente trabalho de Hoffman. Dobrygin consegue transmitir toda a insegurança do jovem Issa, ainda que ele tenha bem definido o que pretende fazer desde o início. Sua insegurança é acentuada nos diálogos e em um bonito plano do diretor que retrata o reflexo do personagem em um espelho dividido. Ao passo que conhecemos seu histórico, ficamos cada vez mais próximo do personagem, mesmo que o vejamos algumas vezes por silenciosas câmeras de segurança, o que é outro acerto do diretor. Digo isso pois essa opção de desenvolver o personagem de Issa faz com que o espectador se aproxime também da advogada vivida por McAdams. Longe de ter as mesmas certezas que fizeram a jovem advogada defender os direitos de minorias imigrantes, Annabel se vê envolvida com o Issa, mas fica a sugestão que sua ajuda tem origem na conspiração que percebe fazer parte, e não simplesmente em suas convicções políticas e sociais de jovem rica de esquerda, como assim diz Günther. O experiente Dafoe, com pouco tempo de cena, consegue dar tridimensionalidade suficiente ao seu personagem que precisa defender os interesses do banco, mas com notório rancor de como seu pai construiu um império financeiro que o condena a um legado do qual busca manter distância.
O filme ainda tem um ótimo desenho de som, que contribui para estabelecer a tensão e ainda investe em um belo momento de Günther em um instrumento musical que, dado o momento que isso ocorre, constrói mais uma faceta de um personagem fadado ao uso de bebida e cigarros, já que parece ser a única maneira de sobreviver a tudo aquilo que persegue. Aliás, o cigarro é tão presente na narrativa que eu arriscaria dizer que podemos imaginar o cheiro dos ambientes de Günther.
Filme espetacular, certamente entre os melhores do ano e uma belíssima despedida de Hoffman (e como detesto escrever isso). O Homem Mais Procurado é impecável nas suas duas horas de duração, é uma obra prima do gênero de espionagem e deve estar em muitas premiações no próximo ano. Vou torcer pra isso para que nunca mais nos esqueçamos dele: Philip Seymour Hoffman.
1 Comment
Pingback: Falando sobre “O Mensageiro” | Central42